sábado, 28 de julho de 2012

Lindolf Bell

REQUIEM
Para Hélcio Reis Fausto

Não escreverei sobre ausências,
Ausência é bandeira de nada.
É ter partido
em direção de um país sem lodo nem lama.
Onde a identidade se faz de afeto.
E a dúvida é o poço entreaberto
e o coração um fruto de semente madura.

Ausência é só lembrar, é só lembrar.

Ausência é o lume do esquecimento.
É só o limo de eternidade.
É só flor de certeza e agonia.
Só corpo impedido, só surdo desejo,
só pele mudada em terra.
só tempo feito areia.

Ausência é só lembrar, é só lembrar.

Pouco dizer, muito sentir.
Te lembro de algumas palavras poucas,
algumas entreditas,  escritas outras.
E agora encontras guarida
na fantásticas ficção da morte
que desperta o mar nos olhos de amigos
e incendeia desertos em gargantas
e bocas de espanto.

Ausência é só lembrar, é só lembrar.

Ausência é pano sem fibra.
Não tem poder de celebração.
Se faz de terno poido no cabide.
Cartão postal de viagem
roído de traça.
Fotografia em portarretrato,
álbum de casamento,
instântaneos da infância
fingindo viver.

Ausência é só lembrar, é só lembrar.

Nunca quis ver-te na morte, não te vi.
O rosto fechado,
os braços que envolveram mulher, filhas, sonhos,
estes braços sobre o peito cruzados
não quis ver,
nem quero este movimento (momento) clandestino,
destino, vespertino,
o ponto final de um gesto brando, reconhecido,
guardado entre os dedos o soluço dos que ficam
e a melancolia da sala de visitas.

Ausência é só lembrar, é só lembrar.

O espírito é livre: por isso deixas poemas.
A carne é forte
quando se despoja de presença
e se desfaz em desterro de eternidade.
Outros sentimentos, outro amanhecer,
escritos no ar da casa,
na cadeira de pensar,
no limpo sapato de inútil brilho.

Ausência é só lembrar, é só lembrar.

Atravessaste a rua de tua casa
(quantas vezes, quantas manhãs),
as ruas de Blumenau,  incógnito,
sem alardes atravessando o fim do dia,
tanta travessia, tantos dias te vi à distância,
ligados pelo invisível, poema sob a pele,
te ouvi atravessando probabilidades, desafios,
desafetos, falsos arbítrios,
noticiários destorcidos,
palavras forjadas de mel e veneno,
palmas públicas, discursos vazios,
tapas nas costas, divergências,
tapumes, tambores de desfile,
sem queixas nem mágoas
defendendo água clara e pão da verdade
atravessaste a rua definitiva.

Ausência é só lembrar, é só lembrar.

Homem: milagre perecível.
Mas todo homem é milagre de resistência:
conhecer o soluço, a esperança,
o súbito clarão da palavra solidária.
Entender o milagre vivo, aceso e vivo,
aceso e sobrevivo como o mar dentro das conchas
recolhidas na infância,
vivo entre as transversais da solidão,
aceso, vivo e sobrevivo
na seda da noite
que te acolhe
e te guarda dentro de uma estrela subterrânea.

Ausência é só lembrar, é só lembrar.

Cedeste lugar: à mesa das refeições,
à transitória face, aos devaneios.
Mas acendes o lume da memória.
O tempo de cada homem
é tempo de metamorfose,
de circunstâncias efêmeras,
eis a flor, achada ao acaso,
eis a flor do tempo.

Ausência é só lembrar, é só lembrar.

Deixar poemas escritos.
Deixar poemas por fazer, lapidar.
Deixar esta identidade real.
Deixar o nome em documentos precários,
deixar impressões na louça diária,
no trinco da porta,
no silêncio, na biografia,
na distribuição de afetos.

Deixar poemas: matéria da alma
que se estribe na solidariedade.

Ausência é só lembrar, é só lembrar.

Pouco dizem os restos mortais.
E o que dizem teus princípios imortais
não decifra dúvidas
nem desfaz o nó de incertezas.
Mas sendo matéria de consolo
faz pensar
que o destino é suave.

Fonte: Suplemento Literário, "Minas Gerais", Belo Horizonte: Imprensa Oficial, n. 732, 11 de outubro de 1980, pp. 6-7.

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