segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Jorge Luis Borges

Um sábado
Um homem cego em uma casa oca 
Fatiga certos limitados rumos 
E toca as paredes que se alongam 
E o cristal das portas interiores 
E as lombadas ásperas dos livros 
Proibidos a seu amor e a apagada 
Prataria que foi dos ancestrais 
E as torneiras de água e as molduras 
E umas vagas moedas e a chave.
Está só e não há ninguém no espelho. 
Um ir-e-vir. A mão roça a borda 
Da primeira estante. Sem querer, 
Recostou-se na cama solitária 
E sente que os atos que executa 
Interminavelmente em seu crepúsculo 
Obedecem a um jogo que não entende 
E que dirige um deus indecifrável.
Em voz alta repete e cadenciosa 
Fragmentos dos clássicos e ensaia 
Variações de verbos e de epítetos 
E bem ou mal escreve este poema.

As Causas
Os poentes e as várias gerações.
Os dias e nenhum foi o primeiro.
A frescura da água na garganta 
De Adão. O ordenado Paraíso.
O olho tentando decifrar a treva.
Os amores dos lobos na alvorada.
A palavra. O hexâmetro. O espelho.
A Torre de Babel e a soberba.
A lua que miravam os caldeus.
As areias inúmeras do Ganges.
Chuang Tzu e a borboleta que o sonha. 
As douradas maçãs de certas ilhas.
Os passos do errante labirinto.
A tela infinita de Penélope.
Dos estóicos o tempo circular.
A moeda na boca de um morto.
O peso da espada na balança.
Cada gota de água na clepsidra.
As águias, os fastos, as legiões.
César na manhã clara da Farsália.
A sombra que as cruzes deixam na terra. 
O xadrez e a álgebra do persa.
Os rastros de extensas migrações.
A conquista dos reinos pela espada.
A bússola incessante. O mar aberto.
O eco do relógio na memória.
O rei pelo machado justiçado.
O pó incalculável que foi exércitos.
A voz do rouxinol na Dinamarca.
A escrupulosa linha do calígrafo.
O rosto do suicida no espelho.
A carta do taful. O ouro ávido.
As formas de uma nuvem no deserto.
Cada arabesco do caleidoscópio.
Cada remordimento e cada lágrima.
Definiram-se todas essas coisas
Para que nossas mãos se encontrassem. 
(História da Noite)

Poesia Borges, Companhia das Letras, 2009, pp. 288-290


Nenhum comentário:

Rosa Alice Branco

  A Árvore da Sombra A árvore da sombra tem as folhas nuas como a própria árvore ao meio-dia quando se finca à terra e espera co...