Um homem cego em uma casa oca
Fatiga certos limitados rumos
E toca as paredes que se alongam
E o cristal das portas interiores
E as
lombadas ásperas dos livros
Proibidos a seu amor e a apagada
Prataria que foi
dos ancestrais
E umas vagas moedas e a
chave.
Está só e não há ninguém no espelho.
Um ir-e-vir. A mão roça
a borda
Da primeira estante. Sem querer,
Recostou-se na cama solitária
E sente
que os atos que executa
Interminavelmente em seu crepúsculo
Obedecem a um jogo
que não entende
E que dirige um deus indecifrável.
Em voz alta repete e cadenciosa
Fragmentos dos clássicos e
ensaia
Variações de verbos e de epítetos
E bem ou mal escreve este poema.
As Causas
Os poentes e as várias gerações.
Os dias e nenhum foi o primeiro.
A frescura da água na garganta
De Adão. O ordenado Paraíso.
O olho tentando decifrar a treva.
Os amores dos lobos na alvorada.
A palavra. O hexâmetro. O espelho.
A Torre de Babel e a soberba.
A lua que miravam os caldeus.
As areias inúmeras do Ganges.
Chuang Tzu e a borboleta que o sonha.
As douradas maçãs de certas ilhas.
Os passos do errante labirinto.
A tela infinita de Penélope.
Dos estóicos o tempo circular.
A moeda na boca de um morto.
O peso da espada na balança.
Cada gota de água na clepsidra.
As águias, os fastos, as legiões.
César na manhã clara da Farsália.
A sombra que as cruzes deixam na terra.
O xadrez e a álgebra do persa.
Os rastros de extensas migrações.
A conquista dos reinos pela espada.
A bússola incessante. O mar aberto.
O eco do relógio na memória.
O rei pelo machado justiçado.
O pó incalculável que foi exércitos.
A voz do rouxinol na Dinamarca.
A escrupulosa linha do calígrafo.
O rosto do suicida no espelho.
A carta do taful. O ouro ávido.
As formas de uma nuvem no deserto.
Cada arabesco do caleidoscópio.
Cada remordimento e cada lágrima.
Definiram-se todas essas coisas
Para que nossas mãos se encontrassem.
(História da Noite)
Poesia Borges, Companhia das Letras, 2009, pp. 288-290
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