(XXV)
terceiro estado de espírito
já estou calma; não menos triste;
tentar dizer o que uma coisa é, é viver;
eu sou feita de irregularidades definitivas, e avanço por este carreiro até aos confins da cerca, à espera que alguém passe, e me leve. Não me surpreende a presença de Coração do Urso tendo debaixo da pata o maço de folhas atadas das minhas últimas vontades; levanta a garra no ar, e para que eu finalmente me ria, bate com o maço no focinho para que eu me lembre dos sermões de Eckhart esmagando-se sobre a minha cabeça;
eu sei que é um animal vagabundo, susceptível, solitário, tranqüilo; mesmo quando faz bom tempo sai pelo cres- púsculo, sem deixar rasto nas abreviaturas de caminhos;
mas
o meu, em vez de revolver as pedras, apanhar os formigueiros, desenterrar os bolbos, e colher mirtilhos
preocupa-se comigo quando entro numa terceira fase do espírito.
Eu sou feita de irregularidades definitivas e avanço por este caminho até aos confins da minha vontade, à espera que ele passe e me leve.
(XXVI)
o último estado de espírito
debaixo da outra pata do Urso que, afinal, é um relevo da chaminé da sala em que trabalho durante o inverno,
há o cubo das palavras da minha língua; demora a rolar numa dança antiga e desenvolta, executada pelo urso, mas quando o ritmo adquire a segurança de deslizar, a primeira impressão que recolho é de que todas as palavras são inéditas, e não estão sós; a companhia das palavras que vêm ter comigo tem lugar no âmago de uma grande independência tal como aquela que eu aceito para a dança do Coração do Urso;
compelida a atravessar o mundo através do meu mundo, e do mundo de Copérnico e de Escarlate (refiro-me ao mundo por definir aqui presente), ora me sinto incluída no parque, ora me sinto excluída da cerca; que absurdos momentos sem confiança porque eu sei bem que Copérnico e Escarlate têm necessidade e amor determinado, pela mulher que os inclui na paisagem;
In: CONTOS DO MAL ERRANTE, Lisboa: edições rolim, 1986, pp. 52-53
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