quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Clarice Lispector

7 de junho de 1969

O QUE É O QUE É?
Se recebo um presente dado com carinho por pessoa de quem não gosto — como se chama o que sinto? Uma pessoa de quem não se gosta mais e que não gosta mais da gente — como se chama essa mágoa e esse rancor? Estar ocupado, e de repente parar por ter sido tomado por uma desocupação beata, milagrosa, sorridente e idiota — como se chama o que se sentiu? O único modo de chamar é perguntar: como se chama? Até hoje só consegui nomear com a própria pergunta. Qual é o nome? e este é o nome.

A NOITE MAIS PERIGOSA
Juro, acredite em mim — a sala de visitas estava escura — mas a música chamou para o centro da sala — uma coisa acordada estava ali — a sala se escureceu toda dentro da escuridão — eu estava nas trevas — senti que por mais escura a sala era clara — agasalhei-me no medo — como já agasalhei de ti em ti mesmo — que foi que encontrei? — nada senão que a sala escura enchia-se de uma claridade que não iluminava — e que eu tremia no centro dessa difícil luz — acredita em mim embora seja difícil explicar — sou alguma coisa perfeita e graciosa — como se eu nunca vira uma flor — e com medo pensei que aquela flor é a alma de quem acabara de morrer — e eu olhava aquele centro iluminado que se movia e se deslocava — e a flor me impressionava como se houvesse uma abelha perigosa rondando a flor — uma abelha gelada de pavor — diante da irrespirável graça desse bruxuleio que era a flor — e a flor depois ficava gelada de pavor diante da abelha que era muito doce das flores que ela no escuro chupava — acredita em mim que não entendo — um rito fatal se cumpria — a sala estava cheia de um sorriso penetrante — tratava-se apenas de um esbranquiçar das trevas — não ficou nenhuma prova — nada te posso garantir — eu sou a única prova de mim — e assim te explico o que os outros não entendem e me põe no hospital — não entendo que se possa ter medo de uma rosa — experimentaram com violetas que eram mais delicadas — mas tive medo — tinha cheiro de flor de cemitério — e as flores e as abelhas já me chamam — não sei como não ir — na verdade eu quero ir — não lamente a minha morte — já sei o que vou fazer e aqui mesmo no hospital — não será suicídio, meu amor, amo demais a vida e por isso nunca me suicidaria, vou mas é ser a claridade móvel, sentir o gosto de mel se eu for designada para ser abelha.

DO MODO COMO NÃO SE QUER A BONDADE
Y com sua enorme inteligência compreensiva, dedicando-se a não ser humana, no sentido em que ser humana é também ter violências e defeitos. Dedica-se a compreender perdoando os outros. Aquele coração está vazio de mim porque precisa que eu seja admirável. Todos recorrem a ela quando estão com algum conflito e ela, “a consoladora oficial”, en­tende, entende, entende. Minha grande altivez: preciso ser achada na rua.

MAS JÁ QUE SE HÁ DE ESCREVER...
Mas já que se há de escrever, que ao menos não esmaguem as palavras nas entrelinhas.

In: A Descoberta do Mundo, 1984, pp. 300-302



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