1976
“Coração Americano um sabor de vidro e corte.” (Fernando Brant)
Aos meus companheiros de sala Almino Affonso e Plinio Arruda Sampaio
1
Tombou sobre as cúpulas
sem forma
aos poucos penetrando com suas cinzas
as pedras e os beirais e as próprias pombas
foi tomando de úmido
o que era só frio
pois pelo alto chegava
e quase de repente os vitrais embaçava
foi colhendo pessoas
pálidas e com olhos de fadiga
que se diluíam e de novo condensavam
armas daninhas de nenhuma identidade
mas incansáveis
e fomos vendo que ninguém nos salva
fomos sentindo que este peso é muito
que não somos capazes
Senhor faz de nós qualquer coisa
alguma coisa que seja tua para sempre
que te pertença
qualquer coisa menos isto que agora calados somos:
gente com medo.
2
Estamos todos cansados
É de tarde e o céu escuro cai
o chão de asfalto pesa
temos amigos
é como se pudéssemos falar
e como se pudéssemos sorrir
Mas já não sabemos nada
Um grande dedo aponta direção desconhecida
Estamos perdidos
e muito cansados
Os amigos consultam-se com olhares
as palavras são curtas e a angústia
muita
Nem a música pode o que podia
Vemos os quadros azuis e por vezes o mármore
olhamos o campo verde emoldurando cinzas
estamos aqui calados olhando e tristes
e duramente e infinitamente
cansados
Quem há de delatar
quem há de resistir por forte e quem
sucumbirá depois de algumas lágrimas?
Quem será traidor quem o herói
a quem havemos de encontrar um dia
marcado a ouro na rua?
Quem está degradado em seu ofício
quem desterrado e puro
a quem enviaremos nossas cartas cifradas?
Para quem os cifrões?
3
Todos partiram:
os que liam
e os que escreviam.
Os que sorriam
e os que calculavam.
Os que brilhavam
e os sofriam.
Todos foram de partida.
Mudou-se a vida.
Hoje estão vivos
os que se calam.
Os que concordam que estão concordes.
Quando se acorda
mandam dormir
quem nos acorda.
Partiram os que cantavam
e os que cantando despertavam.
Partiram os que falavam
e os que falando explicavam.
Partiram os que lidavam
com brinquedos de palavras;
e os que brincando ensinavam.
Partiram. E no entanto
havendo gente de menos
o mundo ficou mais apertado.
4
Ficção científica.
Faz um livro de ficção científica e esquece.
Telenovela.
Escreve logo uma telenovela.
E esquece.
Introspecção.
Faz a introspecção e a masturbação.
E esquece.
Resistência carnavalesca.
Entra no campeonato
bebe e esgota o peito
canta e seca o hálito
e cai na rua como um trapo.
E esquece.
5
Aos poucos o homem fraqueja
e lentamente agoniza
antes da sepultura.
Seu epitáfio é composto,
longamente meditado
muito antes de feito o túmulo.
Outros homens, como a estátua
que ornamentará seu leito,
fazem sua morte.
E muito antes,
como a fizeram, precisos,
sua vida determinaram.
E o homem adormece
sem nunca haver suspeitado,
sem haver lutado nunca.
6 (VALLEGRANDE)*
Nas verdes colinas há um silêncio de morte.
Entre árvores, pássaros, moradas
um silêncio que veio se acomoda.
Surgem as fontes de água,
caminhos de homens sós, passos, picadas,
entre pássaros, fontes, emboscadas.
Nas montanhas mais verdes a morte está plantada
e o céu que ali se estende não se estende por nada.
Se alguém ali morreu, pouco importa quem seja:
foi um homem quem morreu com seus olhos de estrelas,
sua barba e seus cabelos, sua boca e seus desejos.
Um homem morto apenas e não morto por nada
entre árvores, pássaros, fontes, emboscadas,
a caminho das últimas, indistintas moradas.
In: Obra Poética, Editora Hucitec: São Paulo, 1995, pp. 195-198
O PÃO AMARGO
"Ela foi sentar-se em frente dele a boa distância,
como a de um tiro de arco;
pois disse:
que não veja eu a morte do menino.
Sentada em frente dele,
levantou sua voz e chorou."
Gênesis, 21,16
do odre seco em cáustico deserto;
sob o mirrado arbusto a esquiva sombra
se nega pela areia e é como um rastro.
Sem planta fresca, a fruta apetecida
traz a longínqua fixação do incerto;
quando a brasa arenosa for alfombra
tornar-se-á carícia o fogo do astro.
Para a criança adormecida ao braço
o olhar alonga, e faz como se fosse
para nos olhos tê-la, traço a traço.
Lembrando a noite aquela e a face gêmea
que lhe roçara a face em mágoa doce,
a escrava chora a condição de fêmea.
Fonte: Jornal de Poesia e Fonte: Itaú Cultural
Copiado de www.vermelho.org.br
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