segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Murilo Mendes

ÁVILA
A José Bergamin
O aeronauta conduz a bordo a palavra silêncio.
Sobrevoamos Ávila, composição abstrata.
O avião abrindo curvas dá guinadas
Como os movimentos da alma na escrita de Santa Teresa.
Ávila absorvida, surge Madrid à frente:
Subimos agora as ladeiras da descida.

Volto a ver Ávila, contornada a pé.
Em Ávila recebi minha ração de silêncio maior
E pude decifrar o texto do meu enigma:
Deus permitiu que eu cresça desde o início
No espaço árido da minha fome e sede.
Permitiu que eu tocasse o núcleo da minha origem,
Eu que sou o não-figurativo, o não-nomeado,
O não-inaugurado, o que sempre se perfaz,
Nutrido pelo sol interior que acende o esqueleto;
Alguém que é ninguém,
De amor consumido pelo Nada ou Tudo,
O que nunca abriu a boca, nem supõe o milagre,
Habita na aflição, na densidade,
Sem Espanha e com Espanha.
Que muero porque no muero.

Severa e castigada, Ávila funda
O espaço criador do espaço,
A pedra macha de Espanha
Que cerra o segredo. 


SANTA TERESA DE JESUS
Teresa, corpo de glória,
O romance de cavalaria desde cedo
Conduziu-te à aventura celeste.
Da dura terra aprendeste a defrontar
A arma do touro, a cruz ponteaguda, o grito árabe.
Das casas fortificadas de Castela
Extraíste a imagem objetiva
Para fundar teus castillos interiores.
Da pedra de Ávila extrais a resistência.
O vazio do espaço dilatado de Castela
Corresponde ao deserto de Deus.

Teresa, decifras o «mistério» masculino de Espanha.
Teu íntimo substrato é o fogo:
Convida-te a elidir o supérfluo.
Vendo oculto Deus desnudo
—    Minério subjacente de Castela —
Concentraste-o num ponto mínimo.
Descreves com precisão o itinerário da alma.

Altas cristas de Ávila desertas.
Alta Teresa de Ávila, intocada,
—    Rigor e lucidez na intensidade —
Consegues tornar didático o absoluto.

 [In Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, pp. 584-585]


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