Porque, como é possível governar-se para viver sem a leitura? Deixar de escrever pode ser a loucura, o caos, o sofrimento; mas deixar de ler é a morte instantânea. Um mundo sem livros é um mundo sem atmosfera, como Marte. Um lugar impossível, inabitável. De forma que, muito antes da escrita está a leitura, e os romancistas não são mais do que leitores destemperados e descomedidos devido à nossa fome ansiosa de palavras.
Há pouco tempo ouvi a escritora argentina Graciela Cabal,
falar em público, em Gijón, numa intervenção divertidíssima e memorável.
Acabou por dizer (embora ela se expressasse melhor do que eu) que um leitor tem
a vida muito mais longa do que as outras pessoas, porque não morre até acabar o
livro que está a ler. O seu próprio pai, explicava Graciela, tinha demorado
imenso a falecer, porque vinha o médico visitá-lo e, abanando tristemente a
cabeça, garantia: “Não passa desta noite»; mas o pai respondia: «Não, nem
pense, não se preocupe, não posso morrer porque tenho de acabar O Outono do
Patriarca.’' E, assim que o médico se ia embora, o pai dizia: «Tragam-me um
livro mais grosso.»
— Enquanto isso, amigos do meu
pai, que eram saudáveis, fartavam-se de morrer; por exemplo, um pobre senhor
que só foi ao médico fazer um check-up e já não saiu — acrescentava Graciela. —
É que a morte também é leitora, por isso aconselho a que andem sempre com um
livro na mão, porque, quando a morte chega e vê o livro, espreita para ver o
que estamos a ler, tal como eu faço no autocarro, e distrai-se.
Graciela tem razão: não só se
escreve, como também se lê contra a morte. Os mais belos relatos que conheço
sobre o sentido da narrativa incluem sempre essa dimensão fantasmagórica da
confrontação com a Ceifeira. Tal como a história-padrão de As Mil e Uma Noites,
a história de Sherezade que conta histórias. Na verdade, estou convencida de
que esse livro caótico, maravilhoso e imenso, que abarca umas três mil páginas
escritas ao longo de um milênio, esconde mais de uma mulher entre os seus
diversos autores anônimos. Porque, ao lado de passagens terrivelmente
machistas (as mulheres de As Mil e Uma Noites são chicoteadas, maltratadas,
escravizadas, degoladas, narcotizadas, espancadas, insultadas, raptadas e
violadas às mãos-cheias), há inúmeros relatos muito feministas, como as
aventuras de Ibriza, a princesa guerreira, ou a história principal e muito bela
de Sharazad ou Sherezade, que sem dúvida devia ser nomeada a santa padroeira dos
romancistas.
Do livro A Louca da Casa, Edições Asa, Alfragide, 2008, pp. 125-126
Sobre Rosa Montero
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