quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Rosa Montero

Não conheço nenhum romancista que não tenha o vício desaforado da leitura. Somos, por definição, bichos leitores. Roemos as palavras dos livros de uma forma incessante, tal como o caruncho empenha todo o seu ser em devorar madeira. Além disso, para aprender a escrever é preciso ler muito; por exemplo, George Eliot possuía uma cultura vastísssima e lia Homero e Sófocles em grego e Cícero e Virgílio em latim. Eu sou incapaz de semelhante proeza e esta pode ser uma das razões pelas quais escrevo pior do que ela. No seu magnífico ensaio Letra ferida, Nuria Amat propõe aos escritores uma escolha difícil que consiste em decidir entre duas mutilações, duas catástrofes: se, por alguma circunstância que não vem ao caso, tivéssemos que escolher entre nunca mais voltar a escrever ou nunca mais voltar a ler, o que escolheríamos? Nos últimos anos coloquei esta questão, como uma brincadeira, a quase todos os autores com quem fui deparando pelo mundo, e descobri duas coisas interessantes. A primeira, que uma esmagadora maioria, pelo menos noventa por cento e possivelmente ainda mais, escolhe (escolhemos: eu também) continuar a ler. E a segunda, que esta brincadeira de aparência inocente é um bom revelador da alma humana, porque tenho a sensação de que muitos daqueles escritores que dizem preferir a escrita são pessoas que cultivam mais a sua própria personagem do que a verdade.
Porque, como é possível governar-se para viver sem a leitura? Deixar de escrever pode ser a loucura, o caos, o sofrimento; mas deixar de ler é a morte instantânea. Um mundo sem livros é um mundo sem atmosfera, como Marte. Um lugar impossível, inabitável. De forma que, muito antes da escrita está a leitura, e os romancistas não são mais do que leitores destemperados e descomedidos devido à nossa fome ansiosa de palavras.
Há pouco tempo ouvi a escritora argentina Graciela Cabal, falar em pú­blico, em Gijón, numa intervenção divertidíssima e memorável. Acabou por dizer (embora ela se expressasse melhor do que eu) que um leitor tem a vida muito mais longa do que as outras pessoas, porque não morre até acabar o livro que está a ler. O seu próprio pai, explicava Graciela, tinha demorado imenso a falecer, porque vinha o médico visitá-lo e, aba­nando tristemente a cabeça, garantia: “Não passa desta noite»; mas o pai respondia: «Não, nem pense, não se preocupe, não posso morrer porque tenho de acabar O Outono do Patriarca.’' E, assim que o médico se ia embora, o pai dizia: «Tragam-me um livro mais grosso.»
— Enquanto isso, amigos do meu pai, que eram saudáveis, fartavam-se de morrer; por exemplo, um pobre senhor que só foi ao médico fazer um check-up e já não saiu — acrescentava Graciela. — É que a morte também é leitora, por isso aconselho a que andem sempre com um livro na mão, porque, quando a morte chega e vê o livro, espreita para ver o que estamos a ler, tal como eu faço no autocarro, e distrai-se.
Graciela tem razão: não só se escreve, como também se lê contra a morte. Os mais belos relatos que conheço sobre o sentido da narrativa incluem sempre essa dimensão fantasmagórica da confrontação com a Ceifeira. Tal como a história-padrão de As Mil e Uma Noites, a história de Sherezade que conta histórias. Na verdade, estou convencida de que esse livro caótico, maravilhoso e imenso, que abarca umas três mil páginas escritas ao longo de um milênio, esconde mais de uma mulher entre os seus diversos autores anônimos. Porque, ao lado de passagens terrivel­mente machistas (as mulheres de As Mil e Uma Noites são chicoteadas, maltratadas, escravizadas, degoladas, narcotizadas, espancadas, insulta­das, raptadas e violadas às mãos-cheias), há inúmeros relatos muito femi­nistas, como as aventuras de Ibriza, a princesa guerreira, ou a história principal e muito bela de Sharazad ou Sherezade, que sem dúvida devia ser nomeada a santa padroeira dos romancistas.

Do livro A Louca da Casa, Edições Asa, Alfragide, 2008, pp. 125-126 

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