Na celeste cidade das almas
não me permitem ingresso.
Em discórdia comigo mesma,
deploro o corpo — minha morada,
condenado ao escárneo da terra
e à corrupção nefasta.
Dividida entre dois mundos,
não sei se vivo ou se morro.
Ando à deriva de mim mesma
nesse lento perecer que me consome.
As lembranças me fogem, o passado me escapa.
Tudo é mudança.
Atenta aos impulsos da vida
gasto os dias na aridez do descanso.
Todos os espelhos estão cegos à minha imagem.
Os olhos dos amigos recusam contemplar-me.
Orfã da carne mortal,
aguardo a celebração da morte,
o refrigério do rito funerário.
Aspiro ao definitivo.
Para que se cumpra o resgate
urge sepultar no olvido
o que foi paixão e inquietude.
No quadragésimo-nono dia,
depois da última festa,
tudo estará terminado.
Indonésia
NÃO SE DEVE ENGANAR UM MORTO
Na sepultura provisória
iniciam-me nos discretos mistérios da morte.
A vigilância dos amigos
afugenta os monstros noturnos,
oonjura os maus espíritos,
defende-me do tumulto.
Com gestos puros despedem-me
da intimidade dos vivos.
Exaltam a umidade da floresta,
o silêncio da terra,
o manso aconchego da relva.
Compenso as súbitas mudanças
na serena imobilidade;
substituo a fadiga estéril
pelo sono fecundo,
surdo a todo alarme.
Não se deve enganar um morto.
Roubaram-me a inquietude e a dúvida,
habito a certeza inalterável.
China
In: Resgate do Real: Amor e Morte, Coimbra Ed. Ltda: Belo Horizonte, 1978, pp. 56-57
Sobre Maria José de Queiroz
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