sábado, 24 de novembro de 2012

Mia Couto

OS PAPÉIS DA MULHER

O que a memória ama, fica eterno.
Te amo com a memória, imperecível.
Adélia Prado

Sou mulher, sou Marta e só posso escrever.  Afinal, talvez seja oportuna a tua ausência. Porque eu, de outro modo, nunca te poderia alcançar. Deixei de ter posse da minha própria voz. Se viesses agora, Marcelo, eu ficaria sem fala. A minha voz emigrou para um corpo que já foi meu. E quando me escuto nem eu mesma, me reconheço. Em assuntos de amor só posso escrever. Não é de agora, sempre foi assim, mesmo quando estavas presente.

E escrevo como as aves redigem o seu voo: sem papel, sem caligrafia, apenas com luz e saudade. Pala­vras que, sendo minhas, não moraram nunca em mim. Escrevo sem ter nada que dizer. Porque não sei o que te dizer do que fomos. E nada tenho para te dizer do que seremos. Porque sou como os habitantes de Jerusalém.  Não tenho saudade, não tenho memória: meu ventre nunca gerou vida, meu sangue não se abriu em outro corpo. É assim que envelheço: evaporada em mim, véu esquecido num banco de igreja.
Só te amei a ti, Marcelo. Essa fidelidade levou-me ao mais penoso dos exílios: esse amor afastou-me da possibilidade de amar. Agora, entre todos os nomes, só me resta o teu nome. Só a ele posso pedir o que antes te pedia a ti: que me faça nascer. Porque eu preciso tanto de nascer! De nascer outra, longe de mim, longe do meu tempo. Estou exausta, Marcelo. Exausta, mas não vazia. Para se estar vazia é preciso ter dentro. E eu perdi a minha interioridade.

Por que não escreveste nunca? Não é de te ler que mais tenho saudade. É o som da faca rasgando o envelope que trazia a tua carta. E sentir, de novo, uma carícia na alma, como se algures estivessem golpeando um cordão umbilical. Engano meu: não há faca, não há carta. Não há parto de nada, nem de ninguém.

* * *
Vês como fico pequena quando escrevo para ti? É por isso que eu nunca poderia ser poeta. O poeta se engrandece perante a ausência, como se a ausência fosse o seu altar, e ele ficasse maior que a palavra. No meu caso, não, a ausência me deixa submersa, sem acesso a mim.

Este é o meu conflito: quando estás, não existo, ignorada. Quando não estás, me desconheço, ignorante. Eu só sou na tua presença. E só me tenho na tua ausência. Agora, eu sei. Sou apenas um nome. Um nome que não se acende senão em tua boca.

* * *

Esta manhã, contemplei ao longe a queimada. Do outro lado do rio, extensões imensas se consumiam num ápice. Não era a terra que se convertia em chama: era o próprio ar que ardia, todo o céu era devorado por demônios.

Mais tarde, quando as labaredas serenaram, restou um mar de cinza escura. Na ausência de vento, partículas flutuavam como negras libélulas sobre o carbonizado capinzal. Podia ser um cenário de fim de mundo. Para mim, era o oposto: era um parto da Terra. Apeteceu-me gritar pelo teu nome:

Marcelo!

Escutar-se-ia longe, este meu grito. Afinal, neste lugar, até o silêncio faz eco. Se existe um sítio onde eu possa renascer é aqui onde o mais breve instante me sacia. Eu sou como a savana: ardo para viver. E morro afogada pela minha própria sede.

* * *
Que é isto?
Na última paragem antes de chegarmos a Jerusalém, Orlando (a quem devo habituar-me a chamar de Aproximado) perguntou, apontando para o meu nome na capa do meu diário:
O que é isto?
Esta —  emendei. — Esta sou eu.

Devia ter dito: esse é o meu nome, grafado na capa do meu diário. Mas não. Disse que era eu como se todo o corpo e toda a minha vida fossem cinco simples letras. É isso que sou, Marcelo: sou uma palavra, tu me escreves de noite, de dia me apagas. Cada dia é uma folha que tu rasgas, sou o papel que espera pela tua mão, sou a letra que aguarda pelo afago dos teus olhos.

[Fragmento de ANTES DE NASCER O MUNDO, Companhia das Letras: São Paulo, 2009, pp. 131-134].




2 comentários:

Bruno disse...

Adorei seu blog. Gostaria de entrar em contato com você, mas não vi nenhuma menção a seu perfil.

Antonio Damásio disse...

Olá. Obrigado! Mande-me email, por favor. Abraço.
damasio@gmail.com

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