FRAGMENTO: A LOUCA DA CASA
Durante muito tempo achei que
escrever podia resgatar-me da dissolução e da escuridão, porque implica uma
sólida ponte de comunicação com os outros e anula, por isso, a solidão
mortífera; por isso necessitamos de publicar e de ser lidos; por isso o
fracasso total pode desfazer o escritor, como desfez Robert Walser. Depois
compreendi que aqueles a quem chamamos loucos estão, muitas vezes, para além de
qualquer resgate (excepto, talvez, do resgate químico: as novas drogas estão a
fazer milagres), e que a literatura só podia proteger aqueles que estavam deste
lado ou então na zona fronteiriça, como talvez fosse o caso de Walser. Por
último, há alguns anos comecei a pensar que, em determinadas ocasiões
excepcionais, a literatura poderia mesmo acabar por ser prejudicial para o
autor. Isso acontece quando o que se escreve começa a fazer parte do delírio;
quando a louca da casa, em vez de ser uma inquilina alojada no nosso cérebro,
se transforma no edifício inteiro e o escritor, num prisioneiro dentro dele.
Isso aconteceu, por exemplo, a
Arthur Rimbaud, esse poeta deslumbrante que redigiu toda a sua obra antes dos
vinte anos. Foi excêntrico e estranho desde pequeno e adquiriu hábitos de um
autêntico demente: em 1871, com dezasseis anos, não se lavava, não se penteava,
vestia-se como um mendigo, gravava blasfêmias à navalha nos bancos do parque,
vadiava pelos cafés como um lobo sedento tentando que alguém o convidasse para
um copo, contava aos gritos como gozava sexualmente com as cadelas vagabundas e
tinha sempre na boca um cachimbo com o fornilho virado para baixo. Pouco depois disto, mudou-se para Paris e
conheceu Paul Verlaine, outro poeta excelente e um perfeito tarado, alcoólico e
violento. Apaixonaram-se tórrida e venenosamente um pelo outro e, durante
alguns anos, arranjaram-se de forma a tornar impossíveis as suas vidas.
Batiam-se, insultavam-se, ameaçavam-se, esfaqueavam as mãos um do outro nos
cafés. E, ao mesmo tempo, escreviam sem parar. Rimbaud desenvolveu a teoria
literária do Vidente. «Eu sou outro», dizia, e com isso talvez tentasse
transformar o seu sentimento íntimo de alienação numa clarividência homérica,
num dom sagrado e redentor. Passava o dia a estudar livros de ocultismo e
chegou a acreditar que podia fundir-se com Deus recorrendo à ajuda das drogas e
da magia. Como digo, incluiu a sua literatura no delírio. Como se não bastasse,
apanhava carraspanas valentes de absinto e mastigava haxixe a toda a hora
(nessa altura esta droga ainda não se fumava); fazia-o de uma forma consciente
e voluntária, ansioso por quebrar os laços com a pouca racionalidade que lhe
restava, permitindo-lhe dar o salto para a divindade. Tudo isto o conduziu a um
estado de perturbação constante: via salas rutilantes no fundo dos lagos e
julgava que as fábricas que rodeavam Paris eram mesquitas orientais.
Quer a relação amorosa, quer o
estado mental dos dois poetas, foi-se deteriorando rapidamente. Em 1873,
Verlaine tentou matar Rimbaud e deu-lhe três tiros, mas só um acertou, na mão.
Rimbaud acabou no hospital e Verlaine na prisão (onde passou dois anos) e o
escândalo arruinou a vida de ambos porque tomou pública e notória a sua
homossexualidade, coisa inadmissível naquela época; até os amigos de Verlaine,
poetas e supostamente boêmios, o excluíram da antologia de versos parnasianos
que estavam a preparar, como castigo pela sua condição de sodomita. Rimbaud,
que se apressou a publicar o livro Uma Temporada no Inferno, para ver se dessa
forma recuperava algum prestígio, foi completamente menosprezado por aquela
Paris cruel e repressiva. A sua teoria do Vidente tinha falhado. Não só não se
convertera em Deus, como estava mais enterrado do que nunca no demonismo. Em
Novembro de 1875, Arthur Rimbaud queimou os seus manuscritos e deixou de
escrever para sempre. Tinha vinte e um anos.
Passado muito tempo, a irmã
perguntou-lhe por que tinha abandonado a escrita; e ele respondeu que
continuar com a poesia o teria enlouquecido. Por isso não lhe bastou o
silêncio, e, tendo sido todo palavras
(e as palavras terem multiplicado o seu delírio), tentou ser
todo actos e nada mais do que actos. Ou seja, tentou transformar-se num
fazedor. Quis encontrar a sensatez através de uma vida básica, esse tipo de
vida que, de tão despida e difícil, parece mais real. Foi capataz de pedreiras
e pedreiro no Chipre; viajou pela Somália e pela Etiópia, e, em Harar, empregou-se
numa empresa de comerciantes de café. Trabalhava como um condenado e era de uma
austeridade aterradora, quase não comendo e só bebendo água. Explorou regiões
africanas desconhecidas; tornou-se traficante de armas e há quem diga que
também traficou escravos. Era uma personagem conradiana, torturada e
enigmática, que fugia de si própria. Mas não conseguiu correr o suficiente. Em
1891, num recanto longínquo de África, começou a sentir dores pavorosas no
joelho. Era um cancro nos ossos. Amputaram-lhe a perna até à virilha (mutilaram
o poeta mutilado) mas não serviu de nada. O tumor deixou-o praticamente paralisado
e demorou nove meses agónicos a devorá-lo. Rimbaud passou-os a chorar lágrimas
de sangue, em parte pelo sofrimento físico insuportável, mas também de desgosto
por ter vivido uma vida daquelas. Quando morreu tinha trinta e sete anos.
De forma que, ao belo e
truculento Arthur Rimbaud, escrever enlouquecia-o. Claro que, no seu caso,
estamos a falar de poesia, não de narrativa. O romance é uma obra literária
muito mais sensata. O romance constrói, estrutura, organiza. Põe em ordem o
caos da vida, como diz Vargas Llosa. É muito mais difícil um romance contribuir
para o transtorno do seu autor. Mesmo assim, também há romances que acabam por
ser uma alucinação. O magnífico Philip K. Dick acabou acreditando que os seus
romances faziam parte de um complicadíssimo plano mundial e que Deus os
colocara na sua mente para lhe revelar que a Humanidade estava presa numa
ilusão, porque na realidade vivíamos ainda no Império Romano. E começou a agir
de acordo com o que escrevera nos seus livros anteriores.
Mas parece-me que a desordem
psíquica mais comum entre os romancistas é a mitomania. Alguns escritores não
parecem, de todo, distinguir as diferenças existentes entre as mentiras dos
romances e as outras mentiras que contam na sua vida real. Estes autores
costumam embelezar as suas próprias biografias com feitos portentosos, todos
falsos, transformando-se a si próprios nas personagens mais elaboradas saídas
da sua fantasia. Como aconteceu com André Malraux, conforme nos
conta Olivier Todd. Malraux inventou a sua própria vida; por exemplo, falseou o
seu curriculum escolar e disse que sabia grego e sânscrito e que tinha feito
estudos orientais, tudo isso produto da sua imaginação. Além disso, fabricou
para si próprio uma reputação de magnífico combatente da Resistência francesa,
quando na realidade se juntou a ela quase no fim da guerra. Malraux embelezava
tudo, a tudo acrescentava brilho e épica. Hemingway, que era um mitómano
fanfarrão e desagradável, fazia o mesmo; garantia que tinha combatido na
Primeira Guerra Mundial com as prestigiadas tropas de choque italianas, mas a
verdade é que o feriram depois de algumas semanas na frente e sempre como
condutor de ambulâncias e mentiu como um canalha negando os conselhos, a
ajuda e a enorme influência que o seu amigo Fitzgerald tivera nos seus
primeiros livros. Outro exemplo é Emilio Salgari; escreveu dezenas de romances
cheios de vibrantes aventuras exóticas, de mares bravios e navegações épicas,
mas foi um pobre homem que quis ser marinheiro e não conseguiu porque o
suspenderam na academia; que muito poucas vezes em toda a sua vida subiu a um
barco e que quase nunca saiu de Itália. Teve uma vida tristíssima: as dívidas
consumiam-no, a mulher enlouqueceu e ele era um depressivo. Acabou por
suicidar-se, mas o mais terrível foi a sua mitomania o ter levado a imitar os
heróis orientais que tanto admirava: abriu a barriga de cima a baixo com um
miserável estilete e depois rasgou a garganta, numa encenação atroz da morte
por hara-kiri dos samurais.
Contudo, continuo a pensar que
escrever nos salva a vida. Quando tudo o resto falha, quando a realidade
apodrece, quando a nossa existência naufraga, podemos sempre recorrer ao mundo
narrativo. Agora que penso nisso, talvez não seja casual o facto de as minhas
crises de angústia terem desaparecido pouco depois de começar a publicar os
meus romances, completando assim um circuito de comunicação com o mundo;
andava a publicar na imprensa desde os dezoito anos, mas o jornalismo carece
dessa capacidade estruturadora. «Se não escrevesses, enlouquecias», disse
Naipul a Paul Theroux no início da sua relação de amizade. Julgo que a maior
parte dos romancistas se apercebem de que o seu equilíbrio depende, de alguma
forma, da sua obra; que esses livros, se calhar medíocres ou péssimos, como os
de Erich Segai, fazem parte da sua substância mais constante e mais sólida. A escrita é um
esqueleto exógeno que nos permite continuar de pé ortopedicamente quando, sem
isso, seriamos uma gelatina derrotada, uma massa mole esmagada no chão (claro
que o meu amigo Alejandro Gándara deu um dia uma volta inquietante a este
argumento quando respondeu: «Não, a literatura pode ser uma desculpa para se
continuar a ser uma gelatina sem fazer nada para o remediar.»).
É curioso que a escrita possa
funcionar como um dique dos desvios psíquicos, porque, por outro lado, nos põe
em contacto com essa realidade imensa e selvagem que fica para além da
sensatez. O escritor, tal como qualquer outro artista, tenta dar uma vista de
olhos para fora das fronteiras dos seus conhecimentos, da sua cultura, das
convenções sociais; tenta explorar aquilo que é disforme e ilimitado e, esse
território desconhecido assemelha-se muito à loucura. Em criança, estamos todos
loucos; isto é, estamos todos possuídos por uma imaginação indomesticada e
vivemos numa zona crepuscular da realidade na qual tudo é possível. Educar uma
criança implica limitar o seu campo visual, diminuir o seu mundo e dar-lhe uma
forma determinada, para que se adapte às normas específicas de cada cultura.
Já se sabe que a realidade não é uma coisa objectiva; na Idade Média, a
realidade convencional incluía a existência de anjos e de demônios e, por
conseguinte, os cidadãos viam anjos e demônios; mas se hoje o nosso vizinho nos
dissesse que acabava de se encontrar nas escadas com o Diabo, acharíamos que
era doido varrido. A realidade não é mais do que uma tradução redutora da
imensidão do mundo e o louco é aquele que não se adapta a essa linguagem.
De forma que crescer e adquirir a
sensatez do cidadão adulto implica, de alguma forma, deixar de saber coisas e
perder esse olhar multíplice, caleidoscópico e livre sobre a vida monumental,
sobre essa vida total que é demasiado grande para poder ser governada, tal como
a baleia é demasiado grande para poder ser vista na totalidade. Já o disse
James M. Barrie, autor de PeterPan. «Não sou suficientemente jovem para saber
tudo.» Ora bem, os escritores, os artistas e, em geral, os criadores de todo o
tipo (e há muitas formas de criar, desde as muito modestas às muito
importantes) mantêm algum contacto com o vasto mundo de extra-muros; uns
limitam-se a debruçar-se no parapeito e a dar uma rápida vista de olhos, outros
efectuam incursões comedidas ao exterior e outros ainda empreendem longas e arriscadas viagens de exploração das quais talvez nunca regressem.
Do livro A Louca da Casa, Edições Asa, Alfragide, Portugal, 2008, pp. 117-122.
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