sábado, 22 de dezembro de 2012

Yasmina Reza


"Sua irmã quer que eu seja culto. E curioso como nos dias de hoje as mulheres criam objetivos para si. Ela pretende que eu só me interesse pela música. Exato. Aliás, para ser franco, eu não vejo para que serve o resto. Quando você é íntimo da música, quando a música preenche sua vida, diga-me para que servem as palavras, mesmo agradáveis, para que servem as histórias, com o que rima essa reprodução da vida sobre o papel, pela qual todos se apaixonam loucamente, e que cheira a seu trabalho, sua habilidade, e que lhe traz tão pouco do sentimento de fatalidade. Sua irmã me disse que eu seria menos sombrio se lesse. Texto. Isso não me constrangeu. Eu não me aborreci por ser sombrio. Ler o quê, minha querida? Conhecer um pouco a literatura, você não conhece nada, você agora tem tempo. Em lugar de dizer exatamente o contrário, que teria sido a única boa maneira de falar comigo, a única maneira possível de me interessar pelo assunto, mas seu desconhecimento de mim é imenso, você agora tem tempo, diz ela, em lugar de dizer agora, papai, agora que você não tem mais tempo.

A maior parte das pessoas com que encontro, entre as quais minha filha, só tem uma percepção infinitamente trivial do tempo.

Nancy também está entusiasmada pela literatura. Mais exatamente, pois devo admitir que é uma mulher que vi quase sempre com um livro na mão, Nancy está entusiasmada por um escritor: André Petit-Pautre (você adivinha facilmente a que tentações esse nome me expôs). Você não o conhece. Ninguém o conhece. Só eu, pois ela o convida e à sua esposa para jantar de vez em quando. Petit-Pautre é seu guia. E nosso hóspede, de agora em diante. Num mundo em que todos escrevem, digo eu, não é anormal que André Petit-Pautre também escreva. Lionel citou para mim noutro dia essa palavra grandiosa de Enesco sobre Bach. A alma de minh’alma. A Lionel, que sempre gostou dos livros e da música, eu pergunto:
- Você pode citar um único texto que tenha sido a alma de sua alma?
- Não. As palavras não chegam para tanto. E a alma não lê.

Eu me reconciliei com Chopin. Eu poderia dizer que a minha reconciliação foi tão grande quanto a minha aversão durante anos.

À parte alguns instantes de ausência romântica em minha juventude, sempre tive horror a Chopin. E me reconciliei com ele graças a Samson François, rapaz que, até o presente, eu não podia ouvir, por causa de seu nome. Samson ainda pode ser, mas François! Samson Apfelbaum, mas não Samson François. Preso num engarrafamento, ligo a Radio Clássica: Noturno. Deixo. É bonito. Eis que você volta ao Chopin de seus velhos dias, bravo, digo para mim. Quem toca? Samson François. Uma capitulação a mais. O que você quer? Já não estou em idade disso.

Sua irmã, que quer que eu me torne mais culto, me perguntou se fui ao museu Picasso. Eu lhe respondi que não, simplesmente nunca fui ao museu Picasso nem nunca irei ao museu Picasso. Há entusiasmo demais sobre esse assunto, disse-lhe eu. Odeio o entusiasmo das massas pela beleza. De maneira geral, essas pessoas que frequentam as exposições e caminham durante horas me irritam. Sua irmã, que nunca teve nenhum senso de humor nem nenhuma capacidade de julgamento, e cujo marido não a ajudou a melhorar, mas a quem eu perdoo tudo, pois ele é farmacêutico e com ele ao menos posso discutir sobre as fórmulas, encolhe os ombros e me pergunta com uma secreta desolação com que passo meus dias. Eu penso, digo-lhe, no absurdo de nossos esforços. Criar pessoas para se entenderem, em sua reta final, recomendar a literatura e o museu Picasso. Eis com que passo meus dias, respondo-lhe com ênfase, com esse gênero de meditação. “Você se interessa pela política”, diz Nancy. “Ele se interessa sempre muito pela política”, diz delicadamente a pobre Nancy, que minha profundidade constrangeu pessoalmente, e que não deseja vir em minha ajuda, mas se reabilitar como esposa. “Você se engana, minha querida”, sou obrigado a corrigi-la, “eu me interesso pelos acontecimentos do planeta como Lionel de sua janela observa os veículos e os que passam. Indiferente a quase tudo, exceto ao movimento.” O que existe de invariável nelas, e eu as ponho no mesmo saco, é que nunca acreditam em mim. Elas interpretam tudo que digo como presunções lamentáveis e deslocadas. Estou exagerando um pouco. Acredito que no fim do dia, afirmei, falando de Jérôme —veja, Jérôme, outro exemplo, esse garoto que apesar de ser meu neto, afinal de contas ele só tem dois anos e meio, algumas vezes eu chamo de Jérémy ou Thomas, o que não tem nada a ver, bem sei, mas não me lembro de Jérôme, sua irmã toma isso como uma provocação insustentável, ela não imagina nem por um segundo que eu possa esquecer o primeiro nome dessa criança — então, falando de Jérôme eu disse o que penso, dando prosseguimento à conversa que se prolongou, que eu preferiria que ele se tornasse um tirano antes que um pária sindicalizado. Seguem-se algumas exclamações de horror e por último o reaparecimento de Dacimiento como tema de debate, eu afirmo que o único sistema válido é o feudalismo, o qual tinha o mérito de produzir quer anões que não falavam — não iam nos amolar com o museu Picasso e outras bobagens culturais —, quer cavaleiros ou revolucionários, indivíduos épicos que manejavam a espada e a lança. Hoje em dia, existem cartazes e balões e belas mulheres comuns, como você, que cantam. Eu pessoalmente, repeti, prefiro os vociferantes sedentos de sangue que agitam espadas. Isso pelo menos é corajoso. “Será que envelhecer consiste em desenvolver uma paródia de si próprio?”, pergunta sua irmã querendo parecer esperta e mostrar com uma bobagem sua qualidade de igual. Há alguns anos, eu a teria esbofeteado por menos. O que você sabe, pobrezinha, sobre envelhecer? Como ousa empregar essa palavra você, que acaba, com tal presunção, de acrescentar à humanidade um Jérôme suplementar?

— Envelhecer — digo-lhe com modéstia — é se acabar com piedade.

Excerto de UMA DESOLAÇÃO, Rio de Janeiro: Rocco, 2011, pp. 38-41, trad. Sérgio Guimarães

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