segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013
Cristina Campo
MISSA ROMANA
I
Inerme como nenhum lírio
no luminoso
sudário
sobe o Calvário teologal
penetra na sarça ela crepita há milênios sempre oculta
na odorosa nuvem da língua.
Curvado por terríveis ventos
beija em silêncio sagradas feridas
eleva, mostra
puras mãos trespassadas
mendiga paz
entre polegar e indicador
um fio sobre o abismo do Verbo mantém.
Da ossada dos mártires
trituração de alegria
cresce
a raiz de Jessé
desabrocha no cálice abrasado
e na branca lua
onde se cruzam o sangue e
o estandarte
surgindo vacilam seus
joelhos.
Sobre a pedra angular
que estilhaça a morte
eleva-a à altura das lágrimas
e repousa-a
com materno terror
sobre estigmas, esses lábios
que curam a vida.
Em torno ao pasto
mortal
nas orlas de Deus
silvam serpentes mordem o corporal
nos quatro ângulos do conopeu
retraem-se as folhas
dos céus
fendas danificam os pilares.
Assediados
à porta
marcados pelo cheiro da peste
fingem e vendem com gracejos
a enfermos e disformes
da probática
pia
a sua suave máscara de suplício.
II
Falcoeiro do Céu
sobre cuja mão levantada
o Eterno Predador investe
ávido de prisões...
III
Onde vai
este Cordeiro
que aos virgens é dado
seguir onde quer que vá
este Cordeiro
que está direito e morto
sobre o livro dos assinalados
ab origine
mundi?
Não se pode nascer
mas pode-se permanecer
inocente.
Onde vai
este Cordeiro
que a nós que o supliciamos não é dado
seguir com os assinalados
nem fugir
mas soluçando suavemente conceber
no escuro seio da mente
usque ad consummationem
mundi?
Não se pode nascer mas
pode-se morrer inocente.
[Cristina Campo, O Passo do Adeus, tr. José Tolentino Mendonça, Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, pp. 67-73].
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