ALMÁDENA
"Vive assim como quiseras ter vivido quando morras". (Antonio Vieira)Almádena, ensina-me a voltar.
Já varri todos os mortos,
Não há restos no chão.
Um quarto branco, uma cadeira, O meu tempo é o presente,
Não tenho do que me queixar.
Está feito, celebrado.
Janelas e portas abertas,
Na mesa a fruta matutina,
O lírio, o copo d’água Uma casa agradável,
Fosse isto uma casa.
Eu me traí, Almádena.
Agora chove,
E uma tal plenitude,
Império absolvido de história.
Quanta memória vencendo,
Cobrindo, cavando o rosto,
Quantos dias, quanto cinzel,
Quantas horas.
Está chovendo ainda.
Eu tenho um rosto sem marcas.
A lua do amarelo ao sono
E essa estátua que me olha.
Uma obra merecida, consumada.
Eu desapareci, Almádena.
Nada cumpre dizer
Tanto quanto dizem esses olhos.
Eu vivo como quem ama,
Eu consinto,
E só o que me cabe.
Dar e repartir, fazer que não sei,
No bronze ser o animal que dorme.
Há uma única lâmpada,
Há um violino
E a mão que o desata
O vento de quando em quando,
O terço quadrante e a pedra rolada.
Há uma chave que nada guarda.
A terra esplandece,
Consorte de quem parte.
Agora amanhece.
Eu me perdi, Almádena.
Não há rumor nas coisas,
Elas são o que são,
Não desejam explicar-se.
A porcelana, a cambraia, a murta
E a falta de uma asa.
Aqui não existe o medo,
Eu planto e eu desbasto.
As paredes ardem,
A erva recende,
O sol vem do leste,
Tudo em perfeita ordem.
Está pronto, terminado.
Um rasgo, um passo em falso,
Uma sombra,
Agora é tarde.
As cartas não chegam
Nem são enviadas.
A mesa está limpa.
Eu me esqueci, Almádena.
As cores, como elas vibram,
As auroras.
O verde das baixas altitudes,
O vermelho, o azul,
Como entornam.
Eu desço e me arrebento,
Eu despenco, sou forte.
A natureza é forte.
Quatro pilares me suportam.
O céu sobre todas as torres,
Todas as luzes, exceto uma.
As nuvens se cruzam,
Juntam-se e se afastam.
Há uma brisa lá fora.
O corpo está servido,
O corpo está saciado.
Agora anoitece.
Protege-me, Almádena.
(Mariana Ianelli, Almádena, Ed. Iluminuras, São Paulo, 2007)
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