domingo, 17 de fevereiro de 2013

Mariana Ianelli

ALMÁDENA
"Vive assim como quiseras ter vivido quando morras". (Antonio Vieira)

Almádena, ensina-me a voltar.

Já varri todos os mortos,
Não há restos no chão.
Um quarto branco, uma cadeira, O meu tempo é o presente,
Não tenho do que me queixar.

Está feito, celebrado.

Janelas e portas abertas,
Na mesa a fruta matutina,
O lírio, o copo d’água Uma casa agradável,
Fosse isto uma casa.

Eu me traí, Almádena.

Agora chove,
E uma tal plenitude,
Império absolvido de história.
Quanta memória vencendo, 
Cobrindo, cavando o rosto, 
Quantos dias, quanto cinzel, 
Quantas horas.

Está chovendo ainda.
Eu tenho um rosto sem marcas.

A lua do amarelo ao sono 
E essa estátua que me olha. 
Uma obra merecida, consumada.

Eu desapareci, Almádena.

Nada cumpre dizer
Tanto quanto dizem esses olhos.
Eu vivo como quem ama,
Eu consinto,
E só o que me cabe.
Dar e repartir, fazer que não sei,
No bronze ser o animal que dorme.

Há uma única lâmpada,
Há um violino
E a mão que o desata
O vento de quando em quando,
O terço quadrante e a pedra rolada.

Há uma chave que nada guarda.

A terra esplandece,
Consorte de quem parte.
Agora amanhece.

Eu me perdi, Almádena.

Não há rumor nas coisas,
Elas são o que são,
Não desejam explicar-se.
A porcelana, a cambraia, a murta 
E a falta de uma asa.

Aqui não existe o medo,
Eu planto e eu desbasto.
As paredes ardem,
A erva recende,
O sol vem do leste,
Tudo em perfeita ordem.
Está pronto, terminado.

Um rasgo, um passo em falso, 
Uma sombra,
Agora é tarde.
As cartas não chegam 
Nem são enviadas.
A mesa está limpa.

Eu me esqueci, Almádena.

As cores, como elas vibram, 
As auroras.
O verde das baixas altitudes, 
O vermelho, o azul,
Como entornam.

Eu desço e me arrebento,
Eu despenco, sou forte.
A natureza é forte.
Quatro pilares me suportam.

O céu sobre todas as torres, 
Todas as luzes, exceto uma.
As nuvens se cruzam, 
Juntam-se e se afastam.
Há uma brisa lá fora.

O corpo está servido,
O corpo está saciado.
Agora anoitece.

Protege-me, Almádena.

(Mariana Ianelli, Almádena, Ed. Iluminuras, São Paulo, 2007)




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