Enquanto não sabes
que as baleias não são peixes,
que as estrelas não são lanternas de anjos
ou buracos de fechaduras do infinito,
que o trovão não é Deus que está ralhando,
nem são Pedro arredando móveis no céu,
que a chuva não é o mesmo santo despejando cântaros
sobre a terra,
que as nuvens não são mares suspensos, cabeças de avós,
rebanhos, fantasmas, mas vapor - só vapor condensado.
Enquanto não sabes que tudo é fenômeno
como, por exemplo, o arco-íris,
espectro solar.
Enquanto não sabes o que é
fenômeno, Ltda, ONU, verbos e provérbios,
química, teu nome, sobrenome & Cia.
cores, alfabeto, psicologia.
Enquanto não sabes ver televisão
e olhas a Lua — Bolacha Maria -
que — não sabes — é satélite da Terra,
telhado de ébrios
e nau de poetas.
Enquanto não sabes o que é poesia,
crença ou ceticismo
e a diferença
de Banco maiúsculo e banco de praça.
Enquanto não sabes o que é comunismo,
megatons, foguete,
gregos e troianos.
Enquanto não sabes dar corda ao relógio,
só tu sabes tudo,
pois chegaste há pouco
da cidade-enigma.
(Logo esquecerás.)
Quano já souberes
falar convenções,
ler definições,
apertar botões,
lembra-te que és Petrus
e sobre esta pedra
tua mãe se reconstruirá.
(in AROMAS DA INFÂNCIA)
POEMA DE DESPEDIDA AO QUE PARTE PARA O MUNDO
Neste átrio para o mundo viste passar nove luas.
Agora estás pronto e eu te digo adeus porque não poderás voltar.
Aqui tens o teu farnel para a viagem.
Nele eu pus tudo, sem nada esquecer:
teus olhos, tuas mãos, teu cérebro,
teus nervos, teu sangue, tua vocação, teus sentimentos,
tuas palavras, teu nome, tua vida inteira
com atitudes a vestir em cada ocasião.
Aqui tens tua bagagem.
Vai devagar, sozinho, ao leme de tua nave.
De ti eu me despeço:
para este átrio onde nove luas passam silenciosamente
não há caminho de regresso.
(in FIO DE LÃ)
In: Palavra de Mulher (Poesia Feminina Brasileira Contemporânea), Rio de Janeiro: Ed. Fontana, 1979, pp. 184-185
Sobre a autora: Maria de Lourdes Mateus Hortas nasceu na Vila de São Vicente da Beira, Beira Baixa, Portugal, a 4 de Dezembro de 1940. Na terra natal viveu até Outubro de 1950, quando, acompanhando a família (seus pais, Manuel Hortas e Maria Amélia Hortas e sua irmã Maria Daniel), emigrou para o Brasil (Recife, estado de Pernambuco), onde vive até hoje.
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