Em memória de Etty Hillesum (1914 – 1943)
Trabalhava. Trabalhava numa primavera fria
esperando ser como a lua, ser como um pasto:
uma vasta paisagem tranquila –
e desenterrava Deus de sob pedras e cascalhos.
O caminho até o cais era feito entre soldados
(todos tão pequenos por trás de seus crimes).
E trabalhava mais: era uma estaca no mar,
era um pedaço de granito, era o próprio mundo
prestes a ser destruído. E trabalhava mais:
estava com os deportados, com os desaparecidos,
estava com uma flor num retângulo de jardim.
De minuto a minuto forjando a calma em pessoa,
o sorriso de Buda, um terreno baldio.
E já havia partido, muito antes de partir, debaixo
de um céu sem palavras: era uma estrela nos campos,
era a mulher já sem nome do vagão número 12
na direção do Leste, cantando de alegria.
O POETA
Para Paulo José Miranda
Todas essas terras disputadas,
uma vida de alcateia e de cobiça –
mas nem todos nós temos essa fome.
Alguém tem apenas o deserto
de uma história que nunca foi escrita,
a saga sem metáfora de glória
de ciganos tão antigos quanto estrelas –
ao menos um de nós é o outro filho,
o andarilho irmão que foi banido,
e outra vida vem do fundo de um poço,
uma flecha cruza um mundo sem divisas.
Fonte: Revista Pessoa
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