Apesar da obscuridade
cinzenta da antemanhã, via-se que os pássaros, não as amáveis criaturas aladas
que já não tardarão muito tempo a soltar ao sol os seus cantos, mas as brutas
aves de rapina, essas carnívoras que viajam de patíbulo em patíbulo, tinham começado
o seu trabalho de limpeza pública nas partes expostas dos enforcados, as caras,
os olhos, as mãos, os pés, a meia perna que a túnica não alcançava cobrir. Duas
corujas, alarmadas pelo ruído das patas do jumento, alçaram voo dos ombros do
escravo, num ténue rumor de seda só perceptível por ouvidos experientes.
Introduziram-se em voo raso por uma viela estreita, ao lado do palácio, e
desapareceram. Caim tocou o jumento com os calcanhares, atravessou a praça,
pensando se também agora iria encontrar o velho com as duas cabras atadas por
um baraço, e, pela primeira vez, perguntou-se quem seria a impertinente
personagem, Talvez fosse o senhor, muito capaz disso é ele, com aquele gosto de
aparecer de repente em qualquer parte, murmurou. Não queria pensar em lilith.
Quando na sua desolada cama de porteiro despertou de um sono sobressaltado,
constantemente interrompido, um súbito impulso quase o tinha levado a entrar no
quarto para uma última palavra de despedida, para um último beijo, e quem sabe
o que poderia suceder mais. Ainda estava a tempo. No palácio dormem, só lilith
de certeza estará desperta, ninguém daria pela rápida incursão, ou talvez as
duas escravas que lhe haviam entreaberto as portas do paraíso à chegada, e
elas diriam, sorrindo, Que bem te entendemos, abel. Depois de virar a próxima
esquina deixaria de ver o palácio. O velho das ovelhas não estava ali, o
senhor, se era ele, dava-lhe carta branca, mas nem um mapa de estradas, nem um
passaporte, nem recomendações de hotéis e restaurantes, uma viagem como as que
se faziam antigamente, à ventura, ou, como já então se dizia, ao deus-dará.
Caim tocou outra vez o jumento e em pouco tempo encontrou-se em campo aberto. A
cidade tomara-se numa mancha parda que, aos poucos, pela distância que ia aumentando,
apesar do passo medido do asno, parecia afundar-se no chão. A paisagem era
seca, árida, sem um fio de água à vista. Diante desta desolação era inevitável
que caim recordasse a dura caminhada feita depois de o senhor o ter expulsado
do fatídico vale onde o pobre abel para sempre ficara. In CAIM, São Paulo, Companhia das Letras, 2009, pp. 74-75.
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