Todo esse devorar de livros, desde pequena, é simplesmente preguiça da minha parte. Deixo que os outros formulem aquilo que eu mesma
devia fazer. Procuro a confirmação por toda a parte do que em mim vive e se
revolve, mas para obter o esclarecimento vou ter de utilizar as minhas
próprias palavras. Vou ter de deitar borda fora muita preguiça, e sobretudo
inibição e insegurança, antes de me descobrir. E por minha via, aos outros.
Tenho de atingir o esclarecimento e tenho de me aceitar. E agora vou comprar um
melão ao mercado. É tudo um peso enorme dentro de mim. E eu gostaria tanto de
ser leve.
Absorvo tudo, há anos e anos, vai tudo para dentro, para um
grande reservatório, mas um dia terá de sair tudo cá para fora, senão fico com
a sensação de ter vivido para nada, de só ter espoliado a humanidade e não ter
dado nada em troca. Às vezes tenho a sensação de que parasito, daí às vezes a
grande depressão e a interrogação de se na realidade levo uma vida útil. Se
calhar é minha tarefa explicar-me toda, explicar-me realmente toda, tudo o que
me atinge e tortura e o que em mim brada por uma solução e formulação. Porque
porventura não serão problemas só meus, mas também os problemas de muitos
outros. E quando eu, ao fim de uma longa vida, conseguir encontrar uma forma
para as coisas que agora são um caos dentro de mim, talvez tenha então
concluído a minha pequena tarefa com êxito. Enquanto escrevo isto, creio que
algures no meu subconsciente estou a ficar agoniada. Por causa das palavras
«tarefa de vida», «humanidade» e «solução de problemas». Acho essas palavras
pretensiosas, acho-me a mim mesma uma ingênua «donzela recatada», mas isso
deve-se ao fato de ainda não ter coragem de me revelar.
[In Diário 1941- 1943, Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, p. 100]
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