quarta-feira, 3 de abril de 2013

Marguerite Duras

EXCERTO DE "CADERNOS DA GUERRA E OUTROS TEXTOS"

Disseram-me: “O seu filho morreu.” Foi uma hora depois do parto, eu tinha visto a criança. No dia seguinte, perguntei: “Como era ele?” Disseram-me: “É loiro, meio ruivo, tem sobrancelhas como as suas, é parecido com você.” “Ele ainda está lá?” “Está, vai ficar lá até amanhã.” “Ele está frio?” R. respondeu: “Não toquei nele, mas deve estar, está muito pálido.” Depois ele hesitou: “Ele é bonito, é também por causa da morte.” Pedi para vê-lo. R. me disse que não. Pedi à Superiora. Ela me disse: “Não vale a pena.” Não insisti. Explicaram-me onde ele estava, num cômodo pequeno ao lado da sala de trabalho, indo para lá à esquerda. Eu estava sozinha com R. no dia seguinte. Fazia muito calor. Eu estava deitada de costas, estava com o coração cansado, não devia me mexer. Não me mexia. “Como é a boca dele?” “Ele tem a sua boca”, dizia R. E todas as horas: “Ele ainda está lá?” “Não sei.” Eu não podia ler. Olhava a janela aberta, a folhagem das acácias que cresciam nos aterros da estrada de ferro periférica.

À noite, a irmã Marguerite veio ver-me. “É um anjo, você deveria estar contente.” “O que vão fazer?” “Não sei”, dizia a irmã Marguerite. “Eu quero saber.” “Quando são tão pequenos eles os cremam.” “Ele ainda está lá?” “Está lá ainda.” “Então os cremam?” “Sim.” “E rápido?” “Não sei.” “Eu não queria que o cremassem.” “Não se pode fazer nada.” No dia seguinte, a Superiora veio: “Você quer dar suas flores para Nossa Senhora?” Eu disse: “Não.” A irmã olhou para mim: ela tinha setenta anos, estava ressecada pelo exercício cotidiano de organizadora da clínica, ela era terrível, tinha um ventre que eu imaginava preto e seco, cheio de raízes secas. Voltou no dia seguinte. “Você quer comungar?” Eu disse: “Não.” Então ela olhou para mim. Seu rosto estava horrível, era o rosto da maldade, do diabo: “Essa aí não quer comungar e se queixa porque o filho morreu.” Ela saiu batendo a porta. Chamavam-na de “minha mãe” (É um dos três ou qua­tro seres que encontrei que teria gostado de estripar. Estripar. A palavra é vertiginosa. Estripar. A palavra foi feita para ela, para a sua barriga cheia de tinta negra.)

Estava fazendo muito calor. Era entre os dias 15 e 31 de maio. Verão. Eu disse a R.: “Não quero mais visitas. Nada além de você.” Deitada sempre voltada para as acácias. A pele de minha barriga se colava às costas de tão vazia que eu estava. A criança tinha saído. Não estávamos mais juntas. Ela tinha morrido de uma morte separada. Havia uma hora, um dia, oito dias, morta à parte, morta para uma vida que tínhamos vivido nove meses juntos e ela acabava de morrer separadamente. Meu ventre havia caído pesa­damente, floc, sobre si mesmo, como um trapo usado, um farrapo, um lençol mortuário, uma laje, uma porta, um nada que era esse ventre. Ele tinha portado gloriosamente, num arredondamento adorável, aquela semente próspera, aquele fruto (uma criança é um fruto verde que nos faz subir a saliva à boca como um fruto verde) submarino que só tinha vivido no calor viscoso, aveludado e escuro de minha carne e que a claridade matou, que foi mortal­mente atingido por sua solidão no espaço. Tão pequeno e já tanto desde que morreu à parte. “Onde está ele?”, dizia eu a R. “Está sendo cremado?” “Não sei.” As pessoas diziam: “Não é tão terrível no nascimento. É melhor isso do que perdê-lo aos seis meses.” Eu não respondia às pessoas. Era terrível? Acredito que era. Precisamente essa coincidência entre a sua "vinda ao mundo" e a sua morte. Nada. Não me restava nada. Esse vazio era terrível. Eu não tinha tido filho, mesmo durante uma hora, obrigada a imaginar tudo. Imóvel, eu imaginava.  

Este, que está ali agora e dorme, este riu há pouco, riu para uma girafa que lhe acabavam de dar. Ele riu e isso fez barulho. Ventava e uma parte do barulho daquele risinho chegou até mim. Então eu levantei um pouco a capota de seu carrinho, dei-lhe de novo a girafa para que ele risse outra vez. Ele riu outra vez e eu enfiei a cabeça na capota do carrinho para captar todo o barulho do riso. Do riso do meu filho. Coloquei o ouvido naquela con­cha para ouvir o barulho do mar. A ideia de que aquele riso ia-se embora com o vento era insuportável. Eu o peguei. Fui eu que o tive. Às vezes, quando ele boceja, eu respiro a sua boca, o hálito de seu bocejo. Não sou uma mãe biruta. Não vivo só desse riso, desse hálito. Preciso de muitas outras coisas, da solidão, de um homem. Não. Sei o preço de uma criança. “Se ele morrer”, pensei, “terei tido esse riso.” Foi porque perdi um, é porque sei que pode morrer que sou assim. Meço todo o horror da possibilidade de tal amor. A maternidade nos torna boas, diz-se. Bobagem. Desde que o tenho tornei-me má. Enfim, tenho certeza desse horror, enfim eu o tenho, enfim os que acreditam se tornaram para mim absolutamente estranhos.

[DURAS, M. Cadernos da guerra e outros textos, São Paulo: Estação Liberdade, 2006, pp. 221-223].

Steve gribben

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