A morte é meu espanto cotidiano.
Por isso não entendo que a chames
irmã, como à água, à lua,
a tudo o que é vivo e floresce,
a tudo o que é vivo e mata para viver ainda,
como o animal mais terno,
o mais empedernido.
Teu Cântico do Sol é uma oração tão bela
quanto a outra, que se insere
entre as mais belas.
E fala de uma forma tão perfeita
de amar — Ah, se o soubeste! —
sem esperança da mais leve recompensa.
Mas esse renascer de que me falas
para uma vida eterna?
São eternos os campos, as espécies?
Ou todos, se renascem de si mesmos,
conhecem essa estranha sensação
do não-ser, até que vem de novo
a primavera?
Tenho medo de mim, do que não sei,
do que me confiaram certa vez
e por incúria esqueci.
Obedeço a uma lei que desconheço,
e vim, tão sem escolha,
que nem sei a que vim.
XX
Chamo-te santo, santo,
mas não sei do que falo:
da renúncia à riqueza deste mundo?
da tua entrega a teu irmão
sem pedir nada em troca?
do teu desnudamento necessário?
ou da fidelidade a teu destino
de
amar, amar, entre os mais nobres?
Olhavas com atenção a mínima planta,
atendias aos bichos,
que te amavam
de forma obscura, nunca ameaçadora.
Opunhas tua força e rebeldia
passiva ao jugo do mais forte,
e amavas conhecendo o não-amor,
a injúria, a incompreensão, a glória,
que outra
não sei maior que de enfrentar
a dureza da pedra,
a dureza daquele
que não quer ver. XXI
Tua maior lição:
essa humildade
de perdoar sem conta,
esquecendo até mesmo a chaga aberta
em cada mão,
no canto sem suplício levantado
na eterna louvação do que é criado
a cada dia,
cada nova estação.
Se se pudesse ao menos aprender
essa alegria de ser, tão desprovida
de medo ou de paixão,
que até mesmo a Indesejada, a incompreensível
e fatal se incorporasse
ao ofício de viver!
criando um novo espaço para o amor,
onde nada se exclui, nem mesmo a aceitação
do absurdo, a submissão àquilo que me escapa.
[Marly de Oliveira, Aliança, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1978, pp. 41-43].
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