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"Se eu pudesse, hoje,
varria, isto mesmo, varria as pessoas todas com vassoura, como se fossem cisco.
Limpava o chão, passava pano molhado pra refrescar, ia chorar e dormir. Meu
coração agora faz diferença nenhuma de coração de galinha ou barata que galinha
come. Não tem amor nele, nem de mãe, nem de esposa, nem de nada. Tá seco,
raivoso e antipático, quer é sossego, quer é lembrar o morto horas a fio,
espernear em cima da vida tão sem graça e cinzenta. Gosto de ir até no fundo da
cisterna e revirar o lodo, tirar ele com a mão, me emporcalhar bastante, só pra
depois ver a água minando clarinha de novo. Gosto da cesta sobre a mesa com
mamões e bananas, gosto de lavar o filtro todo sábado, encher as talhas com
água nova, gosto. Gosto, mas exaspero-me esquecida dos dons, e parto, como
hoje, o pão, sem reparti-lo. É verdade que sou uma mulher inscrita no seu
ciclo. Mas já dura demais. Quero é neste dia mesmo, prenhe do meu mênstruo não
vazado, escutar dos meus: “esta é minha mãe”; “não vá agora, minha mulher vai
fazer um café.” Sorrindo, servindo-os como a pombos, com arrulhos, milho e
água fresca, andando no meio do revoar deles, sem pisar nenhum; inocente do pensamento que eu vou gerar nos homens: “é uma mulher que se pode
contar com ela à noite.” Assim, riquíssima e útil, a alta tensão, por fim,
domesticada. O poste fincado sem perigo, no meio do jardim".
Adélia Prado, in Solte os Cachorros, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1979, pp.69-70
Cynthia Angeles |
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