domingo, 23 de junho de 2013

Cecília Meireles

SETE
Tudo jaz, diluído e cintilante, numa profunda névoa.
Nada, porém, se perde ou esquece, embora tão finamente 
disperso nessa grandeza.
Gastam-se as imagens e os símbolos; mas a essência resiste.
Realejos e sinos vibram, com as hélices, os cânticos e os gritos,
e tudo é som, naqueles silenciosos corredores,
e a doce luz habita mil esconderijos,
tal como foi em seus inúmeros momentos,
em olhos, flor, seda, chaga e pedra preciosa.
E em diáfanas balanças pairam diamante e pólen, 
bibliotecas e arsenais.

Tudo se encontra nesta bruma: 
o burburinho histórico, a vítima e o carrasco; 
a melodia da sereia nórdica, à proa do barco da conquista; 
plumas e arcabuzes,
o passo do fantasma por aéreas escadas, 
praga e suspiro, acontecimento e remorso...

Tudo paira na estrutura da noite, 
em seus arquivos superpostos.

Tão longe vai o rastro exíguo das gaivotas
como o odor das praias e o rumor grandioso das máquinas.
Rarefeita anatomia da paisagem,
onde cada elemento se faz translúcido,
frágil e rijo como a asa dos insetos e a flexão do pensamento.

Finíssimas pontes transpõem a noite: 
desenhos agudos prendendo as disjunções.

E quem segura a noite, assim carregada desses escombros 
que à luz do sol parecem grandiosos bens indispensáveis?

Homem, objeto, fato, sonho,
tudo é o mesmo, em substância de areia,
tudo são paredes de areia, como neste solo inventado:
mar vencido, fauna extenuada, flora dispersa,
tudo se corresponde:
zune o caramujo na onda com o mesmo som do lábio de amor 
e da voz de agonia.
Os abraços, as nuvens, o outono pelo parque 
têm o mesmo gesto, grave, precário, fluido.

Ah, e os louros cabelos caridosos, e a luminosa pálpebra, 
e as raízes pertinazes, e os ossos foscos, 
e a minha deslumbrada vigília e a memória do universo

tudo está ali, mais a luz confusa que envolve a lua, 
mais o clarão do pólo e as híbridas águas, 
e tudo se desfolha sobre lugares invisíveis 
num outro reino que apenas a noite alcança.

(Doze Noturnos da Holanda)

In: Obra Poética, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983, pp. 386-387

Jacob Maris



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