Como se desenha uma casa
Primeiro abre-se a porta
por dentro sobre a tela imatura onde previamente
se
escreveram palavras antigas: o cão, o jardim impresente,
a mãe para sempre
morta.
Anoiteceu, apagamos a luz e, depois,
como uma foto que se
guarda na carteira,
iluminam-se no quintal as flores da macieira
e, no papel de
parede, agitam-se as recordações.
Protege-te delas, das recordações,
dos seus ócios, das suas conspirações;
usa cores morosas, tons mais-que-perfeitos:
o rosa para as lágrimas, o azul para os sonhos desfeitos.
Uma casa é as ruínas de uma casa,
uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra;
desenha-a como quem embala um remorso,
com algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso.
In Como se desenha uma casa, In Todas as Palavras Poesia reunida, 3a. ed, Porto, Assírio & Alvim, 2013, p. 347.
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