A PERFEITA
SABEDORIA
A verdadeira sabedoria
está nos livros não escritos, isto é, nas folhas de papel em branco,
reunidas em volumes encadernados. É a conclusão de um bibliófilo que se tornou
filósofo. Trocou os livros impressos, que lhe feriam a vista, por outros de
imaculada brancura, e verificou que neles reside a essência do conhecimento.
Gostava de abri-los ao acaso e
passar os dedos, suavemente, na superfície virgem. Nenhuma teoria falsa,
nenhum erro habitava aquelas páginas. Pelo contrário: era como se o saber fora
de discussão se aninhasse ali. O saber é branco, refletiu ele. As mentiras são
coloridas, e as letras são a representação visual de sofismas ou enigmas
carentes de interpretação.
Sua biblioteca se foi reduzindo,
porque a imperfeição do papel era de certo modo um erro, e o nosso homem fugia
dele. Às vezes não era defeito de fabricação, mas simples dobra ou sinal de
unha deixado por alguém. O volume era condenado e, de redução em redução, a
biblioteca se constituiu num só livro, que continha a verdade absoluta e
suprema.
Folheá-lo seria risco
imensurável, pois se acaso a página se rasgasse? Uma gota de café pingasse, ou
a cinza do cigarro? Nunca mais o abriu. O livro foi posto sob redoma. O sábio
contemplava-o em êxtase. Dormia feliz, certo de que a sabedoria inefável estava
a dois passos da cama, protegida.
O calor partiu o cristal da
redoma, e ao retirar o livro dentre os estilhaços ele cortou a mão, que
sangrou sobre o volume, conspurcando a perfeita sabedoria. Nunca mais foi
feliz.
(Contos Plausíveis)
In POESIA E PROSA, Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1992, p. 1243.
REGINA SCHWINGEL |
Nenhum comentário:
Postar um comentário