quarta-feira, 24 de julho de 2013

Carlos Drummond de Andrade

A PERFEITA SABEDORIA
A verdadeira sabedoria está nos livros não escritos, isto é, nas folhas de papel em branco, reunidas em volumes encadernados. É a conclusão de um bibliófilo que se tornou filósofo. Trocou os livros impressos, que lhe feriam a vista, por outros de imaculada brancura, e verificou que neles reside a essência do conhecimento.
Gostava de abri-los ao acaso e passar os dedos, suavemente, na su­perfície virgem. Nenhuma teoria falsa, nenhum erro habitava aquelas pá­ginas. Pelo contrário: era como se o saber fora de discussão se aninhasse ali. O saber é branco, refletiu ele. As mentiras são coloridas, e as letras são a representação visual de sofismas ou enigmas carentes de inter­pretação.
Sua biblioteca se foi reduzindo, porque a imperfeição do papel era de certo modo um erro, e o nosso homem fugia dele. Às vezes não era defeito de fabricação, mas simples dobra ou sinal de unha deixado por al­guém. O volume era condenado e, de redução em redução, a biblioteca se constituiu num só livro, que continha a verdade absoluta e suprema.
Folheá-lo seria risco imensurável, pois se acaso a página se rasgasse? Uma gota de café pingasse, ou a cinza do cigarro? Nunca mais o abriu. O livro foi posto sob redoma. O sábio contemplava-o em êxtase. Dormia feliz, certo de que a sabedoria inefável estava a dois passos da cama, protegida.
O calor partiu o cristal da redoma, e ao retirar o livro dentre os esti­lhaços ele cortou a mão, que sangrou sobre o volume, conspurcando a per­feita sabedoria. Nunca mais foi feliz.
(Contos Plausíveis)

In POESIA E PROSA, Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1992, p. 1243.

REGINA SCHWINGEL

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