Glória e Gabriel passeavam em Belo Horizonte quando viram o
mendigo se arrastando sobre as nádegas. Haviam acabado de almoçar. O homem
certamente espirrara, um grosso canudo de matéria — catarro, ela se obrigou a
dizer mentalmente — tremulava sobre seu bigode. Gabriel disse apenas: — Ih! Glória,
incapaz de viver levemente, quis olhar de novo. Instintivamente passou o lenço
no seu próprio nariz, certificando-se estar seca e limpa. Tempos atrás
vomitaria até exaurir-se, por dias e dias não comeria nada, imaginando contra
si o frio pegajoso da coisa, sessões de tortura, onde fosse obrigada a
manipulá-la, o reino do céu concedido a troco do sacrifício máximo: tocar a
coisa com a língua. A repugnância absoluta como quando via minhocas depois das
chuvas, quanto menores e mais finas, pior. O terreno úmido no quintal, tio
Joaquim cavando iscas, as minhocas em suas colônias, seus ovos branquinhos,
horror! Desejo de que o sol esturricasse aquilo, enjôo de comida, pensamento inventando minúcias que
faziam seu estômago revirar-se. O avô apertava uma narina no meio do terreiro e
assoava-se. Pulava no chão a coisa esverdeada, grande, dura, como aquelas
orelhas que brotam nos paus podres. Difícil imaginar aquilo cabendo numa fossa
nasal. As galinhas corriam disputando a prenda, ele falava: “Ê sinusite, é isso
que me incomoda.” Todos repugnavam mas ninguém cometia o desrespeito de dizer
nada a ele. Glória disfarçava, espantava as galinhas e varria a coisa, cobria-a
com um monte de terra e lavava, lavava as mãos, escovava bem os dentes,
penteava e amarrava o cabelo, pegava o ferrinho que o pai fez pra aquele fim e
ia pra privada limpar o vaso de barro encaixado no cimento. Raspava as crostas,
jogava latas e latas dágua. A vida parecendo resumir-se em excrementos, odores,
consistência e aspectos de matérias nojentas. O que era aquilo? ela a ponto de
adoecer, pensando coisas absurdas: o corpo de Deus que a gente come, também
ele uma gruta de dejetos? Uma ocasião depois das chuvas o tampo da fossa
afundou. A mãe levantou pra fazer café deu com a cratera, os paus que a
protegiam apodrecidos, alguns caídos no buraco desbarrancado, a massa da coisa
exposta. O pai não foi pra oficina aquele dia pra fazer o conserto. Desceu ele
mesmo o buraco horrível e cavou, limpou, calçou, arrumou dormentes novos sobre
o vão. Glória admiradíssima daquilo, corajoso como entrar na cova dos leões, igual como Laocoonte
entre as cobras no seu livro de história. A mãe porque estava com dó do pai fez
arroz- doce. Ele gracejava. Depois tomou banho bem tomado, passou álcool e
creolina nas mãos, cortou as unhas dizendo: “Sou o mesmo, limpinho, limpinho.”
Glória não entendia, invejava o pai, sua inacreditável saúde. Só uma vez o vira
não comer. Chegou em casa pálido, engasgado: “A máquina acabou de cortar no
meio um companheiro meu.” “O senhor viu, pai?” “Vi, o meninozinho dele assistiu
tudo, segurando a marmita, morreu sem almoço, o coitado, me pedindo: acaba de
me matar...” “acaba de me matar...” “Morreu sem almoço...” Comer era
importante demais... Choraram com ele, as panelas no fogão parecendo pessoas
intrometidas que a gente manda calar, pretas, murchas, pobres. Se Stella
estivesse ali seria como seu pai, teria coragem de se acercar do mendigo,
emprestar seu lenço, limpar seu bigode sujo — São Francisco de Assis e o beijo
no leproso. — A dois passos de onde se encontrava esperando Gabriel que entrara
num banco, Glória viu a mulher tirar do saquinho plástico uma colher de massa
escura e comer. Três novos mendigos se acercaram, ela pôs na mão de cada um.
Quem comeu por último foi um passante, um moço negro. Sem dizer palavra, parou,
estendeu a mão, comeu e seguiu. A mulher guardou o resto. Vamos, disse
Gabriel, já resolvi o que queria. Vamos passar por ali, pediu Glória, com intuito de se
purgar, olhar de frente o mendigo. Ele se limpara, o que lhe deu alívio. Estava
longe da inocência de sua infância quando desejava resolver o problema dos
pobres com uma praça bem grande cheia de tanques, bucha e sabão. Agora, bem
sabia o que deveria fazer.
In Cacos para um Vitral, Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1980, pp. 89-92.
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