terça-feira, 23 de julho de 2013

Adélia Prado

Glória e Gabriel passeavam em Belo Horizonte quando viram o mendigo se arrastando sobre as nádegas. Haviam acabado de almoçar. O homem certamente espirrara, um grosso canudo de ma­téria — catarro, ela se obrigou a dizer mentalmen­te — tremulava sobre seu bigode. Gabriel disse apenas: — Ih! Glória, incapaz de viver levemente, quis olhar de novo. Instintivamente passou o len­ço no seu próprio nariz, certificando-se estar seca e limpa. Tempos atrás vomitaria até exaurir-se, por dias e dias não comeria nada, imaginando contra si o frio pegajoso da coisa, sessões de tor­tura, onde fosse obrigada a manipulá-la, o reino do céu concedido a troco do sacrifício máximo: tocar a coisa com a língua. A repugnância abso­luta como quando via minhocas depois das chu­vas, quanto menores e mais finas, pior. O terreno úmido no quintal, tio Joaquim cavando iscas, as minhocas em suas colônias, seus ovos branquinhos, horror! Desejo de que o sol esturricasse aquilo, enjôo de comida, pensamento inventando minúcias que faziam seu estômago revirar-se. O avô apertava uma narina no meio do terreiro e assoava-se. Pulava no chão a coisa esverdeada, grande, dura, como aquelas orelhas que brotam nos paus podres. Difícil imaginar aquilo cabendo numa fossa nasal. As galinhas corriam disputando a prenda, ele falava: “Ê sinusite, é isso que me incomoda.” Todos repugnavam mas ninguém co­metia o desrespeito de dizer nada a ele. Glória disfarçava, espantava as galinhas e varria a coisa, cobria-a com um monte de terra e lavava, lavava as mãos, escovava bem os dentes, penteava e amarrava o cabelo, pegava o ferrinho que o pai fez pra aquele fim e ia pra privada limpar o vaso de barro encaixado no cimento. Raspava as cros­tas, jogava latas e latas dágua. A vida parecendo resumir-se em excrementos, odores, consistência e aspectos de matérias nojentas. O que era aquilo? ela a ponto de adoecer, pensando coisas absur­das: o corpo de Deus que a gente come, também ele uma gruta de dejetos? Uma ocasião depois das chuvas o tampo da fossa afundou. A mãe le­vantou pra fazer café deu com a cratera, os paus que a protegiam apodrecidos, alguns caídos no buraco desbarrancado, a massa da coisa exposta. O pai não foi pra oficina aquele dia pra fazer o conserto. Desceu ele mesmo o buraco horrível e cavou, limpou, calçou, arrumou dormentes novos sobre o vão. Glória admiradíssima daquilo, cora­joso como entrar na cova dos leões, igual como Laocoonte entre as cobras no seu livro de história. A mãe porque estava com dó do pai fez arroz- doce. Ele gracejava. Depois tomou banho bem tomado, passou álcool e creolina nas mãos, cortou as unhas dizendo: “Sou o mesmo, limpinho, lim­pinho.” Glória não entendia, invejava o pai, sua inacreditável saúde. Só uma vez o vira não comer. Chegou em casa pálido, engasgado: “A máquina acabou de cortar no meio um companheiro meu.” “O senhor viu, pai?” “Vi, o meninozinho dele as­sistiu tudo, segurando a marmita, morreu sem al­moço, o coitado, me pedindo: acaba de me ma­tar...” “acaba de me matar...” “Morreu sem almoço...” Comer era importante demais... Choraram com ele, as panelas no fogão parecendo pessoas intrometidas que a gente manda calar, pretas, murchas, pobres. Se Stella estivesse ali seria como seu pai, teria coragem de se acercar do mendigo, emprestar seu lenço, limpar seu bi­gode sujo — São Francisco de Assis e o beijo no leproso. — A dois passos de onde se encontrava esperando Gabriel que entrara num banco, Gló­ria viu a mulher tirar do saquinho plástico uma colher de massa escura e comer. Três novos men­digos se acercaram, ela pôs na mão de cada um. Quem comeu por último foi um passante, um moço negro. Sem dizer palavra, parou, estendeu a mão, comeu e seguiu. A mulher guardou o res­to. Vamos, disse Gabriel, já resolvi o que queria.  Vamos passar por ali, pediu Glória, com intuito de se purgar, olhar de frente o mendigo. Ele se limpara, o que lhe deu alívio. Estava longe da inocência de sua infância quando desejava resol­ver o problema dos pobres com uma praça bem grande cheia de tanques, bucha e sabão. Agora, bem sabia o que deveria fazer.

In Cacos para um Vitral, Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1980,  pp. 89-92.







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