terça-feira, 2 de julho de 2013

Isabel Mendes Ferreira

CINCO DA TARDE E LORCA NÃO ESTÁ AQUI

cinco da tarde e Lorca não está aqui. desertou, esfumou-se. ao invés a minha cozinha brilha.brílho contínuo ironia de detergentes acidulada com lixívia eficaz espessa e aromática, nada de debussy nem de verdi. só os pratos no lugar o fogão limpo a mesa com cheiro a pedra e a iogurtes magros que a elegância é o elixir da vaidade, não sei cozinhar mas sei de cor as vitaminas dos legumes profilacticamente estou em dia. não sei organizar um refogado mas desenho nas facas um destino incerto de sal e fermento, dos outros dias aqueles que cabiam no bolso na saia recorto um seio alto as pernas esguias um ventre liso andrógino infecundo. esbelta solta e livre soltava os cabelos corria para o vale incerta evasiva assimétrica florbela sem fogos cadentes antígona com sílabas sáficas. inconseqüente, cinco da tarde e sento-me sozinha a vigiar a solidão de massa e farinha, estou crescida, abro a gaveta das horas, arrumo dois anos no pote da pimenta verde e falo para as moscas, o peixe está congelado, bebo café. não sei passar a ferro, reforço as minhas rugas, engordo, penso no verão e limpoaspiro a secura dos cotovelos que já não mostro no areai, compro uma senha de solário e envio-me resmas de barcos de papel, cheira a branco na minha cozinha, é um diagnóstico de claras em castelo, são cinco da tarde e não comprei fiambre nem melancia, o elevador chia. os vizinhos também, o gato dorme, tudo está no seu lugar, na respectiva e milimétrica simetria de uma casa deserta, onde nem o pó entra, apenas a certeza congelada de que a vida não é solar, antes a cartilha de somar sonhos marítimos que dão para nenhuma praia, um lençol espremido na máquina um saco cheio de cascas de laranjas amargas um óleo espesso a escorrer para o chão. cinco da tarde e proust não me disfarça o cabelo branco, não sei ligar o forno, não quero ler as instruções, nem quero saber, mesmo, eu gosto é de fazer nada. ficar assim à escuta dos ecos do meu corpo que anoitece depressa sem glória nem anestésicos, alimento-me de indolência mole doce abuso do sal das minhas lágrimas ouço o meu colesterol a gemer a inchar a aorta a arredondar as ancas a tornar mínimas as calças a implorar dois furos acima no cinto, cinco da tarde e não me revolto, sou puré de ameixas uma camisa desbotada manteiga fora de prazo tudo ao contrário menos a mão que segura o espelho, onde moras agora mãe? era tão cedo quando partiste. bem sei que já passava das cinco da tarde quando só e nua fechaste os olhos, para sempre, e eu não estava lá para chorar, chorar por mim por ti por nós que nos desencontrámos no maldito quarto de hospital onde uma estúpida e incisiva hiperplasia do útero te negou a vida e apoucou a minha, para sempre, e ainda agora não posso chorar tudo o que não soube dar-te. tu que com dedos de leite me deste os olhos da vida como se nunca fosses abandonar-me. e agora a tua ausência é um pico na minha língua e dói. dói até ao limite, dói-me a falta do teu sorriso estelar e sei que nunca cresceste qual peter pan que sempre detestei mas que por ti fingi gostar e juntas nos levei a voar em ramos de cerejeira, brincámos ao faz de conta de mãe e filha como bichos de seda incapazes da transição natural, eu não voei e tu inesperadamente alteraste o curso de todos os rios. a meio caminho abriste a foz e logo me afundei no meu frágil casulo, sem teias nem janelas, são cinco da tarde e os meus olhos rasam a espuma de novembro e porque tu foste em novembro agora é sempre inverno. São cinco da tarde e nada é relevante, já mudei a água das túlipas dei a volta ao quarto do meu filho arrumei os legos fechei as asas do avião e dei-lhe cereais com mel. na minha cozinha anda um mozart adoentado a compor palavrões e eu digo-lhe tem juízo e dá-me antes uma receita contra as dores de alma. não te rias assim tão staccato alarve e genial, irrita-me a tua música magnífica densa pura. escreves alto o que não posso dizer, um dicionário o meu filho quer um dicionário e já são cinco da tarde e a tua mão cheira a leite com chocolate e as letras estão com baunilha e a tua boca tem flúor e temos de ir ao pediatra, vamos já. deixa-me só barrar-me de competência o teu pai vai adorar, cinco da tarde e a minha vida é uma risca azul na tua camisola de marinheiro, e que interessa esta sinopse inábil de abelha de patas para o ar se amanhã regresso ao sítio inóspito do senso comum? gosto de não gostar, a música toca-me e lima-me as arestas e à noite imito o salto do tigre voando sobre um ninho de corpos nus e anônimos, de vez em quando a beleza surge em bemol nos teus olhos azuis e eu sorrio como se estivesse nas caraíbas e tu fosses marlon brando mas é só muito de vez em quando porque amanhece sempre cedo e de repente são cinco horas da tarde. cinco horas desta tarde branca e o amor é um vândalo vencido pela sede e pelo medo. um tumor excisado através da internet, sempre às cinco da tarde.

In As Lágrimas Estão Todas Na Garganta do Mar, Lisboa: Arcádia, 2010, pp. 334-336

Judith Leyster


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