quinta-feira, 25 de julho de 2013

Isabel Mendes Ferreira

era da alma. sim. estilhaços, era da paisagem caída sobre os acordes da noite, cálida. calada, de poeiras e relâmpagos em extinção, porém fecundos ainda, como silêncio ambarino nos teus ombros, redondos, estilhaços, sim. de um dezembro que a morte fez de todos os dias o mesmo dia. mesmo depois de mim. rasa na tua sepultura de ervas e cardos. estilhaços sim. refracções isoladas de tempo e som. e a vida é só este instante, de estilhaços sim. “as obras primas são sempre escritas numa espécie de língua estrangeira”.

voilá la vie. la nuit. estilhaços, oui. sim. línguas de aço. doença sem frêmito, devagar, só espaço, praia sem ondas, rebentação fria. sono­lenta no horizonte, cada vez mais perto, na constante matéria do pre­cário. rígido, hirto. um devir-anjo felino, a irromper-me a garganta, inchada, de sílabas, de papel, ardido, ardente, rumor parasita de uma ausência musculada. on est ce quon pense? já não me penso, arrefece a respiração, medo estreito, ponte alargada de certezas, rios árabes a serem pedras líquidas no deserto enquanto me visto de areia, ou de sombra, cada vez mais perto, perto, perto, estilhaços, sim. agora, incêndio, sem sentido, de olhos abertos, a devorar dezembro, que atento e vingativo me espera e abraça, perto, muito perto, viagem, certa, e a casa é uma estátua, presença de nuvem tumular. on devient noir sur le corp et on se quitte.. .em estilhaços, reveladora a ausência de luz. e de dezembro é o pulso. decepado. é bom não escrever. des. ser. aberto o olhar em estilhaços. arrepio.
alma tensa e húmida de terra e de sal. como ser interior sendo corpo e planta silente? 

In As Lágrimas Estão Todas Na Garganta do Mar, Lisboa: Arcádia, 2010, pp. 358-359.

Amadeo de Souza-Cardoso

Um comentário:

Anônimo disse...

Poesia pura. Foi muito bom, reler. Obrigada, Poeta.

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