domingo, 14 de julho de 2013

Mariana Ianelli

NINGUÉM MAIS SENÃO EU COMIGO NO ESCURO

O quarto feito um lago sem fundo e o corpo ali mergulhado, esperando o sono. Nesta hora do ninguém mais senão eu comigo no escuro, vai-se embora a pose de garça, o extenso currículo, a questão da honra. E quando tudo se aclara e as partes da bilha quebrada se encaixam.

Os dias voltam, tantas coisas voltam, o que nem sabíamos ter salvado aqui dentro, o repique de um sino e um estrondo de portas, em algum lugar daquela casa uma briga mal contida explodindo em sussurros, mas por que lembrar disso agora, dos móveis arrastados na enchente, das paredes cobertas de lama, de repente a prancheta branca onde o primeiro poema e uma gata siamesa debaixo do  calor da lâmpada, tudo isso que vem num instante, e que já foi o pio de cada dia, durante anos e anos, agora é só uma aguada no tempo, um chumaço de nuvens desenhando formas, agora um lustre japonês, agora uma orquídea, agora uma salamandra, todas essas coisas que voltam misturadas, mas cada uma perfeitamente clara, inexplicavelmente viva, perto de ser tocada, nesta hora do corpo caído no escuro, ao comprido na cama, esperando o sono, nesta vigília do terceiro olho, este olho que se abre com perícia de lobo, que se abre e vai à caça de todas essas coisas, é então que lá de dentro vem o relâmpago, mas como foi que não vi isso antes, quanto descaso, quanta ansiedade inútil, ou será que vi e desprezei, pois também isso pode acontecer nesta hora, debulhar o terço do guardai-me em vosso nome, escutai-me, dai-me forças, minha rocha e meu refúgio.

Sabe-se lá quanto tempo dura essa hora que não tem fundo para um corpo estendido que não está morto, que tem visões que não são as de um sonho, quando tudo fica tão nítido que mal chega o dia seguinte e já não lembramos que sabemos tanto.

(Publicada em 05/02/2011)

In Breves Anotações sobre um Tigre, ilustrações de Alfredo Aquino, Porto Alegre: Ardotempo, 2013, p. 59

Alfredo Aquino

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