SM: Você poderia falar sobre o seu processo de criação na
poesia e na prosa?
hh: Normalmente
você não pode dizer “eu hoje vou escrever um poema”, da mesma forma que você
diz “eu hoje vou continuar o meu trabalho de ficção, de prosa”. Escrever ficção
é um trabalho mais ou menos disciplinado. A poesia não. A poesia você não
programa, é um estado quase inexplicável porque surge a qualquer momento. O
primeiro verso aparece para você.
Outro dia, de repente, me veio uma frase assim: “Uma égua na água sob a lua”. Achei a frase
bonita, anotei e coloquei-a em minha mesa. Às vezes eu anoto umas frases e
coloco em minha mesa. Tenho uma bonita de Oscar Wilde que diz: “Todos nós
estamos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas”. Então anotei a
frase. Depois de mais ou menos uns trinta dias, por acaso, eu estava folheando
um dicionário de autores estrangeiros, quando leio a história do poeta chinês Li Tai Po, que embriagado sai de barco uma noite e, ao querer apanhar a lua refletida no
lago, mergulha na água e morre. Quando terminei de ler essa história, de
repente, me veio um fluxo amoroso, um sentimento que não sei definir, uma coisa
febril, como se você estivesse entrando em contato com algo que não sabe explicar. É um sentimento quente, fervoroso, e
então a poesia vem quase num fluxo, quase inteira:
De tanto te pensar, Sem Nome, me veio a
ilusão.
A mesma ilusão.
Da égua que sorve a água pensando sorver a
lua.
De tanto te pensar me deito nas aguadas
E acredito luzir e estar atada
Ao fulgor do costado de um negro cavalo de cem
luas.
De te sonhar, Sem Nome, tenho nada
Mas
acredito em mim o ouro e o mundo.
De te amar, possuída de ossos e de abismos
Acredito ter carne e vadiar
Ao redor dos teus cimos. De nunca te tocar.
Tocando os outros
Acredito ter mãos, acredito ter boca
Quando só tenho patas e focinho.
Do muito desejar altura e eternidade
Me vem a fantasia de que Existo e Sou.
Quando sou nada: égua fantasmagórica
Sorvendo
a lua n’água.
A poesia vem, sem você arrumar muito, com esse
ardor, esse vermelho todo, e então eu vou escrevendo o poema. Depois eu arrumo
poucas palavras, porque, nesses dias todos, aquelas imagens já estavam dentro
de mim. A ficção também aparece como
uma das imagens de mim mesma. Eu imagino que
posso ser várias pessoas, vários homens, várias mulheres, e, dependendo de como
estou comigo mesma e com o mundo, surge uma personagem. Surgiu assim a Hillé,
num momento em que eu sentia uma necessidade enorme de falar do desamparo que a
pessoa sente envelhecendo, tendo desejado tanta compreensão e não tendo
conseguido. Então surge uma personagem dentro de mim e o nome Hillé vem de repente. Talvez seja de lembranças de leituras,
do meu nome, Hilda Hilst... Depois uma amiga me contou que Hillé quer também
dizer doença. E eu, antes de tudo, estava sendo Hillé naquele momento, estava
passando por um processo de busca muito desesperada, me sentindo desamparada em
relação ao mundo, achando que várias pessoas nessa minha idade devem se sentir
assim, sem coordenadas para se segurar, sentindo um desespero muito grande. E,
então, a Hillé ficou me acompanhando um ano, dois anos. Às vezes eu anotava uma
frase que ela dizia, um momento dela, mas nunca conseguia a Hillé inteira. Até
que um dia, de repente também, a primeira frase na prosa surge assim de
repente, não tem momento nem hora, mas você sabe que é o começo do relato.
Então me veio a frase: “Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei
dar nome...”. É o dia em que vai começar tudo. Tenho sensações diversas e
também medo, pois há dois anos que estou convivendo com aquela personagem e sei
que agora é hora de passar para outro que já estava sedimentado dentro de mim. O texto já vem bastante arrumado porque já foi
vivido esses dois anos, então não há muito o que ficar trabalhando. Escrevo
pouco por dia, o máximo que consigo escrever são umas trezentas palavras. Para mim é assim. Escrevo na primeira pessoa porque
sinto que fico mais próxima do outro para contar. Tenho dificuldades em
escrever na terceira pessoa, pois sinto sempre um distanciamento, como se eu
não estivesse dentro da personagem.
Tenho a impressão
de que todo o meu trabalho é mesmo um círculo buscando as mesmas coisas. A
pergunta é sempre a mesma. Quem eu sou, por que exatamente essa é a minha vida, será que eu vou terminar como? Será que eu entendi
direito o meu processo de vida, soube fazer mais do que eu podia, ou fiz menos?
São sempre as mesmas buscas, e talvez exista alguma coisa que eu ainda não
compreendi, que está ligada a mim num
processo que eu também não sei qual é, mas que é invisível, inaudível,
incomensurável Mas eu sinto que tenho uma afinidade, uma vontade de pactuação
com algo que eu desconheço, mas que faz parte do cósmico. Eu acho que o meu
caminho é sempre esse, o desejo de me irmanar com o inatingível para ver se
descubro o sentido do que é existir.
In "Fico besta quando me entendem - Entrevistas com Hilda Hilst", Cristiano Diniz (Org.), São Paulo, Ed. Globo, pp. 91-93.
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