sábado, 9 de novembro de 2013

Ingeborg Bachmann

Em casa deito-me no chão e espero, eu ofego e me afogo, me afogo cada vez mais; é mais grave do que algumas sístoles adicionais, eu não quero morrer antes que Malina chegue, olho para o despertador, os minutos não passam e, no entanto, tenho a impressão de que minha vida está passando. Não sei como cheguei ao banheiro, ponho as mãos embaixo da torneira de água fria, a água corre pelos braços até o cotovelo, esfrego os braços e os pés e as pernas com um pano gelado, na direção do coração, os minutos não passam, mas agora Malina deve chegar, e então Malina chega, imediatamente estou menos tensa, finalmente, meu Deus, por que você chegou tão tarde?!

Certa vez, em um navio, eu estava sentada no bar com um grupo de passageiros que iam para a América, alguns eu já conhecia. Então um deles começou a queimar as costas da mão com um cigarro aceso. Ele foi o único a rir, não sabíamos se também deveríamos rir. Na maioria das vezes não se sabe por que as pessoas fazem mal a si mesmas, elas não o dizem a ninguém, ou então dizem algo bem diferente, para que não se descubra o verdadeiro motivo. Em um apartamento em Berlim encontrei certa vez um homem que bebia um copo de vodca atrás do outro mas nunca ficava bêbado; horas depois continuava conversando comigo incrivelmente sóbrio e, quando ninguém estava prestando atenção, ele me perguntou se podia me rever, pois queria me rever de qualquer jeito, e meu silêncio foi tão inequívoco que era o mesmo que um consentimento. Depois falou-se sobre a situação mundial, e alguém pôs um disco no toca-discos, L'Ascenseur a l'échafaud. Quando os acordes soavam baixinho e a conversa havia chegado ao telefone vermelho entre Washington e Moscou, o homem me perguntou, no tom mais natural possível, como pouco antes, quando perguntara se eu não ficaria melhor vestida de veludo, ele preferia me ver em veludo: A senhora já matou alguém? Respondi no tom mais natural possível: Não, claro que não, e o senhor? O homem disse: Eu sim, eu sou um assassino. Por um momento eu não disse nada, ele me olhou docemente e acrescentou: A senhora pode acreditar! E de fato acreditei, pois deveria ser verdade; ele foi o terceiro assassino com quem estive sentada em uma mesa, mas o primeiro e o único a confessá-lo. As duas outras vezes foi em noitadas em Viena, e fiquei sabendo depois a caminho de casa. Vez por outra quis anotar algo sobre essas três noites, separadas por muitos anos, e em uma folha avulsa escrevi, como tentativas: Três assassinos. Mas aí não fui adiante, pois só queria anotar algo sobre esses três para chamar a atenção sobre um quarto, pois a história de meus três assassinos não dá uma história; não tornei a ver nenhum deles, hoje eles estão vivendo em algum lugar, jantando com outras pessoas, fazendo mal a si mesmos. Um deles não está mais preso em Steinhof, o outro está na América com o nome trocado, o último bebe, para ficar cada vez mais sóbrio, e não está mais em Berlim. Do quarto não posso falar, não me lembro dele, eu esqueço, não me lembro...

(Mas corri contra o arame farpado eletrificado.) Lembro-me desse detalhe insignificante. Uma vez joguei fora minha comida, dia após dia, mesmo o chá, às escondidas; devo ter sabido por quê.

[Excerto de "Malina", tradução de Ruth Röhl, São Paulo, Ed. Siciliano, 1993, pp. 226-227]

Sobre Ingeborg Bachmann







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