terça-feira, 25 de março de 2014

Al Purdy

SOBRE SER-SE HUMANO
Quando a minha mãe foi parar ao hospital
após ter caído sozinha no quarto
eu estava a vinte e oito quilómetros de distância
a tentar construir uma casa

Fui visitá-la mais tarde
e algo no meu rosto a fez dizer
"Achei que fosses sentir-te pessimamente"
referindo-se ela a eu ficar destroçado
com aquilo que lhe tinha acontecido
— eu não andava a sentir lá grande coisa
por essa altura e julgo que terá transparecido
o simples pensamento de que teria de percorrer
aqueles vinte e oito quilómetros todos os dias
para a visitar e o resmoneio para mim mesmo
Nesse instante
ela tinha visto para lá das portadas
que normalmente se fecham sobre o rosto humano
e apercebeu-se de repente
que pouco ou nenhum afecto
por si havia no meu rosto
e essa percepção
foi pior do que os seus ferimentos

Porém não há como voltar atrás no tempo
para agora fazer algo a esse respeito
se nada foi feito então
e nada foi feito
Ela morreu não muito tempo depois
desorientada da cabeça
esquecida daquilo que lhe tinha acontecido
mas eu lembro-me dessas últimas palavras
coloco-as em primeiro lugar
na lista das coisas de que me envergonho
tão intoleráveis como apercebermo-nos
de que toda a nossa vida foi desperdiçada
— lembrando as palavras da minha prima
sobre o seu irmão bêbedo:
"Teria sido melhor
se ele nem sequer tivesse vivido"

Lembro-me dessas últimas palavras
antes de a febre lhe arrebatar a ideia
e a única coisa positiva agora
é pensar nessas palavras
e ela ver-se imediatamente
restituída de vida
no meu pensamento
para repetir as mesmas palavras
"Achei que fosses sentir-te pessimamente"
uma e outra e outra vez
e eu continuo envergonhado
e eu continuo vivo

Al Purdy foi um grande poeta canadense (30/12/1918 - 21/04/2000)

[Tradução de Vasco Gato]


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