SOBRE UMA PIETÁ DE TINTORETTO
Nunca uma dor
Teve mais elegância nessas grades
Negras, e devoradas pelo sol. Nem nunca
Elegância foi causa mais espiritual,
Um fogo duplo, em pé sobre as grades da noite.
Aqui,
Uma grande esperança foi pintor. Que é
Mais real: o amargor desejante ou a imagem
Pintada? O desejo rasgou o véu da imagem,
A imagem deu vida ao exangue desejo.
UMA VOZ
Tu que dizem beberes da água quase ausente,
Lembra-te de que ela nos escapa e fala-nos.
A frustrante teria, enfim cativa,
Outro gosto que o da água mortal e serás
O iluminado de palavra obscura
Bebida nessa fonte e sempre viva,
Ou a água é sombra só, em que teu rosto
Reflete apenas sua finitude?
— Eu nada sei, eu já não sou, o tempo acaba
Como a cheia de um sonho aos deuses ocultados,
E tua voz, também como uma água, apaga-se
Dessa linguagem clara e que me consumiu.
Sim, posso aqui viver. O anjo, que é a terra,
Vai em cada touceira surgir e queimar.
Sou esse altar vazio, e esse abismo, e esses arcos
E tu mesmo talvez, e a dúvida: mais a alva
E o refulgir das pedras descobertas.
ARTE DA POESIA
Dragado foi o olhar fora daquela noite.
As mãos secadas e imobilizadas.
Reconciliou-se a febre. Disse-se ao coração
Que fosse o coração. Há um demônio nessas veias
Que fugiu a gritar.
Há na boca uma voz tíbia e sangrenta
Que foi lavada e outra vez chamada.
[In Yves Bonnefoy, Obra Poética, Tradução e org. Mário Laranjeira, São Paulo, Iluminuras, 1998, 235-237]
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segunda-feira, 17 de março de 2014
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