ABADON O EXTERMINADOR - Excerto
Passei um dia muito
ruim, querido B., estão me acontecendo coisas
que não consigo explicar, mas enquanto isso e por isso mesmo trato de
aferrar-me a este universo diurno das idéias. A tentação do universo platônico!
Maior é o tumulto interior, mais tremendas são as pressões que nos acossam,
mais nos sentimos inclinados a buscar uma ordem nas idéias. Sempre me ocorreu isso, mas deveria dizer que sempre
ocorre isso. Lembra o célebre grego harmonioso com que nos encheram a cabeça no
colégio secundário: é uma invenção do século XVIII, e faz parte desse arsenal
de lugares comuns em que encontrarás também a fleugma dos britânicos e o
espírito de medida dos franceses. As mortíferas e angustiantes tragédias gregas
bastariam para aniquilar esta bobagem se não tivéssemos provas mais
filosóficas, e particularmente a invenção do platonismo. Cada um busca o que não tem, e se Sócrates busca a Razão é precisamente
porque necessita com urgência contra suas paixões: lia-se todos os vícios em
seu rosto, lembras? Sócrates inventou a Razão porque era um insensato e Platão
repudiou a arte porque era um poeta. Lindos antecedentes para estes propiciadores do Princípio de Contradição! Como vês, a lógica
não serve nem mesmo para seus inventores.
Conheço bem essa
tentação platônica, e não porque a tenham me contado. Primeiro, a sofri quando era um adolescente, quando me encontrei só, masturbando-me em uma realidade suja e perversa. Então
descobri este paraíso, como alguém que se arrastou por um esterqueiro
encontra um lago transparente onde limpar-se. E muitos
anos mais tarde, em Bruxelas, quando pensei que a tena se abria sob meus pés,
quando aquele rapaz francês que depois morreria nas mãos da Gestapo me confessou os horrores do stalinismo. Fugi para Paris, onde não só passei frio e fome no inverno de 1934, mas
também desolação. Até que encontrei aquele porteiro da École Normale da Rue
d’Ulm que me deixou dormir em sua cama.
Todas as noites tinha de entrar por uma janela. Roubei então no Gibert um
tratado de cálculo infinitesimal, e ainda recordo o momento em que, enquanto tomava um café quente, abri o
livro tremendo, como quem entra em um silencioso santuário após ter escapado,
sujo e faminto, de uma cidade saqueada e devastada pelos bárbaros. Aqueles
teoremas foram me recolhendo como
delicadas enfermeiras recolhem o corpo de alguém que pode ter quebrado a coluna
vertebral. E, pouco a pouco, por entre as frestas de meu espírito destroçado,
comecei a vislumbrar as belas e graves torres.
Muito tempo permaneci naquele reduto de silêncio. Até que um dia me descobri escutando (não ouvindo, mas escutando,
ansiosamente escutando) o rumor dos homens, lá fora. Começava a sentir a
nostalgia do sangue e da imundície, porque é a única forma como podemos sentir a vida. E que pode substituir
a vida, mesmo com suas penas e finitude? Quem e quantos se suicidaram nos
campos de concentração?
Assim estamos
feitos, assim passamos de um extremo ao outro. E nestes amargos tempos finais
de minha existência, em várias ocasiões voltou a tentar-me aquele território
absoluto, jamais pude ver um observatório sem sentir a inversa nostalgia da
ordem e da pureza. E embora não tenha desertado desta batalha com meus
monstros, embora não tenha cedido à tentação de reingressar a um observatório
como um guerreiro a um convento, às vezes
o fiz vergonhosamente, refugiando-me nas idéias sobre a ficção: a meio caminho entre o furor do sangue e o convento.
[In Abadon o Exterminador, tradução de Janer Cristaldo, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981, pp. 72-73].
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