sábado, 3 de maio de 2014

Katherine Mansfield

DIÁRIO
24 de dezembro de 1915
     Sentar-se em frente a um fogo de lenha, mãos cruzadas no colo, olhos fechados. Imaginar-se vendo, além das pálpebras, toda a beleza dançante do dia. Sentir na garganta o calor, como eu imaginava sentir a mancha amarela, quando Bogey segurava sob o queixo um botão-de-ouro, quando a respiração é tão gostosa que se tem medo até de respirar, é como sentir no peito o adejar de uma borboleta. Provar o calor do sol que se derreteu na boca; sentir ainda a branca fragrância maleável que se estende sobre os campos de junquilhos e o odor selvagem e saboroso do alecrim que cresce em pequenos tufos entre as tochas vermelhas próximas da beira-mar.
     A lua está surgindo, mas o dia relutante se prolonga entre o mar e o céu. O mar está salpicado de um tom rosa, da cor das cerejas ainda não maduras, e no céu há uma luz amarela flutuante, como as asas dos canários. Muito resistentes e firmes são os troncos das palmeiras. Emergindo de seu topo, os rijos buquês verdes parecem cortar o ar da tarde e entre eles as árvores de goma azuis, altas e esguias, com folhas em formato de foice e ramos pendentes meio azuis, meio violetas. A luz está justamente acima da montanha atrás da aldeia. Os cães sabem que ela está lá; já começam a latir. Os pescadores gritam e assobiam uns para os outros, enquanto recolhem os barcos. Alguns jovens cantam à meia-voz lá embaixo, na praia, e há som de choro de criança, criancinhas com as faces queimadas e com areia entre os dedos, sendo levadas para casa, para a cama.
     Estou cansada, alegremente cansada. Você acha que as margaridas se sentem alegremente cansadas, quando se recolhem para a noite e o orvalho desce sobre elas?

1916
22 de janeiro — O que é, realmente, que desejo escrever? Eu me pergunto: sou agora menos escritora do que costumava ser? A necessidade de escrever é agora menos urgente? Ainda me parece natural buscar essa forma de expressão? A linguagem a terá preenchido? Eu pretendo algo mais que relatar, relembrar, encorajar-me?
     Há ocasiões em que esses pensamentos me deixam meio assustada e quase me convencem. Eu digo: “Você está agora tão satisfeita consigo mesma, por estar ativa, por estar viva, por viver, por aspirar a um sentido maior para a vida e a um sentimento de amor mais profundo, que aquela outra coisa se foi de você.”
     Mas não, no fundo não estou convencida, pois no fundo jamais meu desejo foi tão ardente. Apenas a forma que eu escolheria mudou por completo. Não me preocupa mais a mesma aparência das coisas. As pessoas que viveram, ou que eu desejava trazer para minhas histórias, não me interessam mais. Os enredos de minhas histórias me deixam inteiramente desinteressada. Admitindo que essas pessoas existam e todas as diferenças, complexidade e resoluções sejam verdadeiras para elas — por que iria eu escrever sobre elas? Não estão próximas de mim. Todos os fios falsos que me prendiam a elas estão cortados por completo.
     Agora, agora quero escrever as recordações de meu país natal até que o estoque se acabe. Não apenas por ser uma “dívida sagrada” que saldo com meu país, por termos nascido lá, meu irmão e eu, mas também porque em meus pensamentos caminhamos os dois por todos aqueles lugares relembrados. Nunca me sinto longe deles. Desejo ardentemente recriá-los ao escrever.
     Ah, as pessoas — as pessoas que amamos, lá — sobre elas também eu quero escrever. Outra “dívida de amor”. Por um momento eu quero fazer nosso país desconhecido saltar aos olhos do Velho Mundo. Ele deve ser misterioso, como se flutuasse. Deve tirar o fôlego. Deve ser “uma daquelas ilhas”. Vou contar tudo, até mesmo como a cesta de lavanderia guinchava e chiava. Mas tudo deve ser contado com um senso de mistério, uma luminosidade, um arrebol, porque você, meu pequeno sol, se pôs. Você perpassou a ofuscante orla do mundo. Agora eu devo fazer a minha parte.
     Depois, quero escrever poesia. Sempre estremeço ante a poesia. A amendoeira, os pássaros, o bosquezinho onde você está, as flores que você não vê, a janela aberta sobre a qual eu me debruço e sonho que você está encostado em meu ombro, as vezes em que sua fotografia parece triste. Mas quero escrever, sobretudo eu quero escrever uma espécie de longa elegia para você. Talvez não em poesia. Nem em prosa, talvez. Quase com certeza num tipo de prosa especial.

[...]
 .
17 de fevereiro — Estou triste, hoje. Talvez seja o velho vento lúgubre. Pensar em você, em espírito, não é o bastante neste momento. Quero você ao meu lado. Preciso me lançar a fundo no meu livro. Então, ficarei feliz. Perder-me, perder-me para encontrar você, querido. Ah, quero que este livro seja escrito. Preciso fazê-lo. Ele deve ser encadernado, empacotado e mandado para a Nova Zelândia. Sinto isso, de todo o coração. Assim será feito.

[Excerto de Diário & Cartas, Tradução de Julieta Cupertino, Revan, Rio de Janeiro, 1996, pp. 60-62]

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