segunda-feira, 26 de maio de 2014

Rainer Maria Rilke

OS CADERNOS DE MALTE LAURIDS BRIGGE

Mas havia algo mais. Havia uma voz, a voz que há apenas sete semanas era desconhecida de todos: pois essa não era a voz do camareiro da corte. Essa voz não pertencia a Christoph Detlev, essa voz pertencia à morte de Christoph Detlev.

A morte de Christoph Detlev já habitava há muitos e muitos dias em Ulsgaard, falava com todos e fazia exigências. Exigia ser carregada, exigia o quarto a/ul, exigia o salão pequeno, exigia a sala. Exigia os cães, exigia que se risse, falasse, tocasse música, ficasse em silêncio ou tudo ao mesmo tempo. Exigia a presença de amigos, mulheres e falecidos, e exigia inclusive morrer: exigia. Exigia e gritava.

Pois quando a noite havia chegado e os membros da criadagem esgotada que não tinham vigília a cumprir procuravam adormecer, a morte de Christoph Detlev gritava, gritava e gemia, berrava por tanto tempo e com tanta insistência que os cães, que de início a acompanhavam uivando, emudeciam e não ousavam se deitar, mas, em pé sobre suas pernas longas, delgadas e trêmulas, tinham medo. E quando as pessoas ouviam no povoado, através da noite estival dinamarquesa, vasta e prateada, que a morte berrava, punham-se de pé como faziam quando havia temporal, vestiam-se e ficavam sentadas em tomo da candeia até que tudo tivesse passado. E as mulheres que estavam próximas de dar à luz eram alojadas nos quartos mais afastados e atrás dos tabiques mais espessos; mas elas a ouviam, ouviam-na como se estivesse em seus próprios corpos, e imploravam para que também as deixassem levantar, e iam, brancas e grandes, sentar-se junto aos outros com seus rostos apagados. E as vacas que pariam nessa época estavam desamparadas e ficavam trancadas, e, de uma delas, arrancaram o feto morto e todas as entranhas quando ele não quis sair de maneira alguma. E todos faziam mal o seu trabalho cotidiano e esqueciam-se de recolher o feno porque durante o dia receavam a noite e porque estavam tão fatigados das tantas vigílias e de levantar assustados que não podiam se lembrar de nada. E quando, no domingo, iam à igreja, branca e sossegada, oravam pedindo para que não houvesse mais nenhum senhor em Ulsgaard: pois esse senhor era terrível. E o que todos pensavam e oravam, o pastor dizia em alta voz de cima do púlpito, pois também ele não tinha mais noites e não podia compreender Deus. E também o dizia o sino, que agora tinha um rival apavorante que ressoava a noite inteira e contra o qual, mesmo que começasse a repicar a todo metal, nada podia. Sim, diziam-no todos, e havia um jovem que tinha sonhado que entrara no castelo e matara o senhor com o forcado do estrume, e as pessoas estavam tão irritadas, tão acabadas, tão exaltadas, que todas prestavam atenção nele enquanto contava seu sonho e, inteiramente sem se darem conta, mediam-no para ver se estaria à altura de semelhante ato. Era isso que as pessoas sentiam e era assim que falavam por toda a região em que, havia apenas algumas semanas, o camareiro da corte era amado e lastimado. Mas ainda que as pessoas assim falassem, nada mudou. A morte de Christoph Detlev, que morava em Ulsgaard, não se deixou coagir. Ela tinha vindo para ficar dez semanas, e as cumpriu. E durante esse tempo, foi mais senhoril do que Christoph Detlev Brigge jamais o fora, ela foi qual uma rainha, chamada, depois e para sempre, de a terrível.

Essa não foi a morte de um hidrópico qualquer, essa foi a morte maléfica, principesca, que o camareiro da corte levara durante toda a sua vida dentro de si e alimentara com seu próprio sangue. Todo o excesso de orgulho, vontade e força senhoril que ele próprio não pudera consumir em seus dias tranquilos passara para a sua morte, a morte que agora se encontrava em Ulsgaard e esbanjava.

Com que expressão o camareiro da corte Brigge não teria encarado aquele que lhe pedisse para morrer outra morte que não essa! Ele morreu a sua morte difícil.

[In Os cadernos de Malte Laurids Brigge, tradução e notas de Renato Zwick,  L&MP, Porto Alegre, 2010, pp. 14-16]



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