quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Jorge de Lima

32
No profundo das coisas materiais,
há um roteiro de dança mais severo
que o bailado do vento entre enforcados,
principalmente quando as feiras findam,
e os derradeiros bêbedos proferem
palavras agoniadas, (os sapientes!)
uns cochilos de cova, uns salmos miados;
é o roteiro da cana. Ei-la que os sua
e os adormece com (entre os suores)
os suores de seiva mais vinagres;
pois a cana são gomos, mesmo bares
com ruídos de língua, tragos fundos,
e uma só folha como espada verde
cobrindo pazes, ventres e barricas
e alambiques, bochechas e garrafas.

Falo de canaviais que com seus bêbedos
são canículas sobre os poentos morros;
falo de canas, falo de seus homens,
seus dançarinos, dançam, dançam
e acometem os bois; desconjuntados
diluem-se nas águas, águas lentas,
e escondem-se nos lodos esfiapados.
Todavia, as polícias entram n’água
com punhais de caianas e golpeiam
(dançarinos!) os peitos encharcados.

E todavia acorrem escafandros
tão fofos como bolhas, câmaras lentas,
algodões de botica, bojos de óleo,
e empolam-se nas bicas de oxigênio
cobertos por placentas maternais.

Surgem as mães ciumentas, cuidadosas,
pés ante pés bailando, triplicadas,
acariciando os seus embriões borrachos.
E todavia acorrem as rameiras
que aparecem lavadas de pecados,
e soerguendo as saias encarnadas
mostram dançando peixes devassados.
E todavia acorrem guarda-chuvas
enfunando defuntos embriagados,
vêm revestidos de bagaços brancos
das canas ósseas dos canaviais.
Todavia há soluços nas moendas:
é o roteiro da cana e seu delírio,
e umas visões de bichos e demônios;
é o motivo da cana pelo mundo.
Ó demências, ó mortes, ó bailados!

33
Tu queres ilha: despe-te das coisas,
das excrescências, tira de teus olhos >
as vidraças e os véus, sapatos de
teus pés, e roupas, calos, botões e
também as faces que se colam à
tua, e os braços alheios que te abraçam
e os pés que querem ir por ti, e as moças
que querem te esposar, e os ais (não ouças!)
que querem te carpir, e os cantos que
querem te consolar, e tantos guias
que querem te perder, e as ventanias
que não dormem, que batem alta noite,
tristes, em tua porta, se ressonas
pois nem o vento, nada te abandona.

[In Invenção de Orfeu, São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp. 77-79]

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