HISTÓRIA DE UM CORAÇÃO REABILITADO
Um dia a casa desaba, é a gota ácida de uma desilusão pequena a que faltava para o oco da imensa desilusão de tudo, é uma vontade de descriar o mundo, de enxotar as palavras que fazem contar histórias, é a solução final de desprezar essas histórias, de matar por esquecimento, pouco a pouco, e, pouco a pouco, as coisas vão ficando menos graves, menos sólidas, as palavras muito frágeis, apagadas, sem memória, mas, mesmo com toda a vontade, com todo aquele imenso oco, ainda assim não é tão fácil, produzir cacos e restos também requer muito trabalho, todo um esforço de força bruta aplicada, todo um labor de fogo, e quanto mais a casa desaba, quanto mais cacos e restos, mais a vontade se energiza, é como drenar o calor das coisas numa explosão magnífica, é um louco glorioso o mentor desse desperdício, criador de escombros, fautor de uma noite infinita, coração desarvorado, um coração em seu limbo, até que um dia, um dia alguém olha a roseira seca no meio de um monte de mato e resolve que ela vai rebrotar, porque, agora sim, está disposto a cuidar de um jardim, mais que disposto, tentado, desafiado a ver se quando rebrota uma rosa vem a vontade de um jasmim, e se é só rebentar o cheiro doce que elas também vêm, as abelhas, essas que andam desaparecidas, as abelhas, as libélulas e as borboletas suicidas de Vinicius, e ver se depois disso tudo a vontade rebenta também, vira corpo de afeto, prazer de cuidar, de dizer e se ouvir dizendo palavras mal despertas, de finas, finíssimas raízes, palavras que um dia se dão ao excesso de estar vivas – lágrimas da aurora, moradas, amor, primícias.
Fonte: vidabreve.com/
domingo, 7 de setembro de 2014
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