Havia nesse tempo uma espécie de sol,
E era ao cimo da água,
e eu no fundo do mar
E eu via aquele brilho sem saber que era sol,
só uma linha difusa a clarear
lugares do nunca
Eu habitava a mais funda fundura,
nela resplandecia
a minha escuridão
Feito entre limos, pedra e pesadelo,
eu era o pesadelo,
e não sabia ainda poder ser
o sustento de versos e de sonhos,
de línguas novas
a falar abismos
Inventaram-me ali,
naquele tempo,
nessa espécie de sol
Não chega o toque para dizer corpo,
e o meu era de pedra
a transformar-se
E disseram-me carne,
e eu fiz-me carne,
e disseram-me lama,
e a pedra no meu corpo fez-se lama,
e deram-me cabelos,
boca, olhar
E eu olhei lá do fundo,
da fundura mais funda onde vivia,
e gritei, descoberto,
e nu, e forte,
e ouviu-me
o mar
Mas o que dele rebentou, profundo,
foi a parte de mim
que nada era
A outra, que eu não sei,
por não ter voz,
ficou na escuridão
por inventar —
[In ESCURO, Lisboa: Assírio & Alvim, 2014, pp. 55-56]
DESENHO DO Mestre H. Mourato |
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