segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Ana Luísa Amaral

ADAMASTOR
Havia nesse tempo uma espécie de sol,
E era ao cimo da água,
e eu no fundo do mar

E eu via aquele brilho sem saber que era sol,
só uma linha difusa a clarear
lugares do nunca

Eu habitava a mais funda fundura,
nela resplandecia
a minha escuridão

Feito entre limos, pedra e pesadelo,
eu era o pesadelo,
e não sabia ainda poder ser

o sustento de versos e de sonhos,
de línguas novas
a falar abismos

Inventaram-me ali,
naquele tempo,
nessa espécie de sol

Não chega o toque para dizer corpo,
e o meu era de pedra
a transformar-se

E disseram-me carne,
e eu fiz-me carne,
e disseram-me lama,

e a pedra no meu corpo fez-se lama,
e deram-me cabelos,
boca, olhar

E eu olhei lá do fundo,
da fundura mais funda onde vivia,
e gritei, descoberto,

e nu, e forte,
e ouviu-me
o mar

Mas o que dele rebentou, profundo,
foi a parte de mim
que nada era

A outra, que eu não sei,
por não ter voz,
ficou na escuridão

por inventar —

[In ESCURO, Lisboa: Assírio & Alvim, 2014, pp. 55-56]

DESENHO DO Mestre H. Mourato

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