domingo, 2 de novembro de 2014

Astrid Cabral


CENÁRIO ARCAICO
O mundo? Aquele quintal
pulando cercas e ruas
até mergulhar raízes
no raso rio vizinho.
Ah verde dossel de folhas
periquitos papagaios
mil sombras à flor da terra
retalhos de azul e sol!
Chuvas de frutas maduras
pedras tingidas de limo
troncos de pardas orelhas.
Era uma vez a mangueira
encantada, tinha ancas
lombo e crinas de cavalo.
Manga espada manga rosa
manga jasmim manga sapo.
Mosquitos zumbiam zin
zin ávidos na carniça
das ácidas graviolas.
Gravetos e folhas secas
fuçavam o chão nos turvos
riachos das enxurradas.
Entre galinhas de Angola
a ciscarem grãos de milho
um jabuti tartamudo
arrastava-se no exílio.
Ossos de animais brotavam
da terra recém-lavada:
sinal da morte nascendo
em irônica semente.
(Meus olhos ciscando o mundo.)

A CASA
Sobre as vigas e o telhado
o tempo choveu o mar de sal
onde se afundam meus olhos.
Camadas de cal e caliça
soterram a casa que tento
em vão desenterrar de mim:

Vivo está o chão dos alicerces
minhocas roçam raízes escondidas
ciscam pintos piolhos-de-cobra
se enrolam em tímidos rocamboles
formigas-de-fogo arquitetam montes
fundas crateras e subterrâneos.
Soberanas as janelas vestem
balcões e saiotes rendados
cortinas de rico labirinto
onde borboletas e altivos pavões
abrem asas e caudas na brisa
enquanto humildes olhos-de-boi
ventilam porões úmidos de mofo
tecendo tapete nas rosáceas
mates de mosaico em que passeio
o adolescente desassossego.

[In Visgo da Terra, In De déu em déu -  poemas reunidos (1979-1994), Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998, pp. 162-163].



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