NOITE
Agora os três lados da escuridão se adensam
com a chegada da aurora
e a mão ainda não tem coragem de atravessar o sólido
ar rumo à folha branca na mesa.
Pois a razão não consegue honestamente resistir a meu
senso de limites! Hoje não posso
mais deixar que a mão escreva aquelas frases descuidadas
que antes me alegravam tanto.
São muitas as idéias que te assaltam no escuro.
E fácil confundir a euforia
da meia-noite, e a cabeça febril criada pelo excesso
de cansaço e café, com agudeza mental.
Mas é claro que ainda não estraguei de todo o meu
cérebro com essas loucas vigílias.
Sei que não há mérito na excitação, por mais intensa
que seja; não acho que seja talento.
Seria uma vergonha ignorar essa pobreza! No entanto,
é grande a tentação. Como são inocentes
os gestos: destruir a noite anônima dando a cada coisa
o seu verdadeiro nome.
Tento manter imóvel a minha mão, mas cada objeto
me namora, mostra-me o quanto
é belo, me convida, a cada movimento que eu faço,
a render homenagem a cada uma
dessas coisas que me cercam, convencidas de que as amo,
e suas vozinhas me imploram
que em minha canção celebre a sua alma - é para isso
que elas precisam de mim.
Eu gostaria de agradecer à vela e, para que todos
conhecessem sua luz,
à minha volta lançaria adjetivos como incontáveis
carícias. Mas me calo.
Na tortura do silêncio, ah!, que dor eu sinto:
a de não dizer, ainda que
comum só palavra, o esplendor de tudo o que meu amor olha,
na escuridão, com olhos atentos.
De que me envergonho? Não estou livre, afinal,
numa casa vazia, em meio à neve,
para escrever, ainda que mal? Para dizer, pelo menos,
o nome da casa, da neve, da janela?
A folha de papel é indefesa: peço a Deus que me dê
humildade. E aqui fico,
diante da luz clara e engenhosa da vela que ilumina
o meu rosto já mergulhando no sono.
[In Poesia Soviética, seleção, tradução e notas de Lauro Machado Coelho, São Paulo, Algol, 2007, pp.533-534]
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