terça-feira, 11 de novembro de 2014

Bella Akhmadúlina

NOITE

Agora os três lados da escuridão se adensam 
     com a chegada da aurora
e a mão ainda não tem coragem de atravessar o sólido 
     ar rumo à folha branca na mesa.

Pois a razão não consegue honestamente resistir a meu 
     senso de limites! Hoje não posso 
mais deixar que a mão escreva aquelas frases descuidadas 
     que antes me alegravam tanto.

São muitas as idéias que te assaltam no escuro.
     E fácil confundir a euforia 
da meia-noite, e a cabeça febril criada pelo excesso 
     de cansaço e café, com agudeza mental.

Mas é claro que ainda não estraguei de todo o meu 
     cérebro com essas loucas vigílias.
Sei que não há mérito na excitação, por mais intensa 
     que seja; não acho que seja talento.

Seria uma vergonha ignorar essa pobreza! No entanto, 
     é grande a tentação. Como são inocentes 
os gestos: destruir a noite anônima dando a cada coisa 
     o seu verdadeiro nome.

Tento manter imóvel a minha mão, mas cada objeto 
     me namora, mostra-me o quanto 
é belo, me convida, a cada movimento que eu faço, 
     a render homenagem a cada uma

dessas coisas que me cercam, convencidas de que as amo, 
     e suas vozinhas me imploram
que em minha canção celebre a sua alma - é para isso 
     que elas precisam de mim.

Eu gostaria de agradecer à vela e, para que todos 
     conhecessem sua luz,
à minha volta lançaria adjetivos como incontáveis 
     carícias. Mas me calo.

Na tortura do silêncio, ah!, que dor eu sinto: 
      a de não dizer, ainda que
comum só palavra, o esplendor de tudo o que meu amor olha, 
na escuridão, com olhos atentos.

De que me envergonho? Não estou livre, afinal, 
      numa casa vazia, em meio à neve,
para escrever, ainda que mal? Para dizer, pelo menos, 
      o nome da casa, da neve, da janela?

A folha de papel é indefesa: peço a Deus que me dê 
      humildade. E aqui fico,
diante da luz clara e engenhosa da vela que ilumina 
      o meu rosto já mergulhando no sono.


[In Poesia Soviética, seleção, tradução e notas de Lauro Machado Coelho, São Paulo, Algol, 2007, pp.533-534]


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