São João da Cruz usava óculos escuros
quando passou por mim na rua.
Santa Teresa de Ávila, bela e circunspecta,
me apareceu abrindo as asas como uma gaivota.
“Ó alma perdida”, os dois gritaram,
“onde é teu lar?”
Eu era uma das bolas malabares da morte
e a cidade um circo místico
com todas as luzes embaçadas.
O espetáculo daquela noite já começara.
Numa avenida larga e pouco iluminada,
as vitrines esperavam por mim,
assistiam à minha passagem,
sabiam os pensamentos em minha cabeça.
Na igreja onde, segundo os jornais,
o infanticida
abrigou-se numa noite de frio,
sentei-me num banco soprando as mãos.
Como um pensamento esquecido e reevocado,
a neve recente na calçada
trazia pegadas frescas — algum mestre desconhecido
oferecendo-se para guiar meus passos.
Eu não fazia ideia do que estava acontecendo.
Quatro jovens agressivos barravam meu caminho,
três muito sérios e um
sorrindo como louco enquanto punha as mãos sobre mim.
Deixei que levassem minha capa de chuva
e saí dizendo a mim mesmo
que era importante manter a calma
e continuar a observar a si mesmo
como se fosse alguém completamente estranho.
Num endereço que me deram,
havia letras X brancas pintadas nas janelas.
Bati, mas ninguém veio abrir.
Depois, uma moça juntou-se a mim nos degraus.
Seu nome era Alma, um sinal auspicioso.
Ela conhecia uma dona de casa
que resolvia os enigmas da vida
e tinha voz de rainha suméria.
Conversamos longamente sobre isso
tremendo e batendo os pés.
No século XVI, ela me disse,
praticantes das ciências ocultas
eram queimados em gaiolas de ferro,
ou então eram vestidos de trapos
e pendurados em forcas douradas.
Uma vez, confessei, num quarto de hotel em Chicago
avistei no espelho alguém
que tinha meu rosto,
mas não lhe reconheci os olhos —
dois olhos duros e oniscientes.
A fome, o frio e a falta de sono
me trouxeram uma espécie de êxtase.
Andei pelas ruas como se perseguido por demônios,
tentando aquecer-me.
Havia o rio East,
havia o Hudson.
Suas águas brilhavam à meia-noite
como óleo nas lamparinas do santuário.
Algo estava para acontecer comigo.
Sobre isso não haveria mais nenhuma palavra depois.
Fiquei de pé, como se paralisado,
observando o céu limpo.
Estava tudo tão quieto
que se ouviria cair um alfinete.
Pensei ter escutado um alfinete caire comecei a procurá-lo
na cidade escura e deserta.
Trad. Carlos Machado
AS VIDAS DOS ALQUIMISTAS
O maior trabalho sempre foi o de apagar-se,
Ressurgir como algo inteiramente distinto;
O travesseiro de uma jovem apaixonada,
Uma bola de sujeira fingindo ser uma
aranha.
Pretos tédios de noites chuvosas do campo
A folhear os escritos de adeptos ilustres
Oferecendo conselhos sobre como continuar
a transmutação
De um pigmento do tempo na eternidade.
O verdadeiro mestre, um do conselho,
Requer cem anos para aperfeiçoar sua arte.
Nesse ínterim, o segredinhos arcanos da frigideira,
O cheiro de azeite de oliva e alho
soprando
De cômodo a cômodo vazio, a gata preta
Se esfregando na sua perna descoberta
Enquanto você hesita em ir até a luz
distante
E o tilintar de copos na cozinha.
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