sábado, 15 de novembro de 2014

Maria João Cantinho

O cão de Dürer
     O homem caminhou firme contra a ventania e as grossas bátegas de chuva, que o atingiam em pleno no rosto. O sobretudo negro enrolava-se-lhe nas pernas, enquanto o céu escurecia cada vez mais e prenunciava a trovoada. Do outro lado da avenida, nas esplanadas, os empregados perfilavam-se à porta, olhando o vazio cinzento do céu. Nas ruas não havia transeuntes, que já tinham fugido à inesperada trovoada.
     Num violento rodopio, as folhas elevavam-se no ar. Ao longe, o casarão permanecia imutável e a sua silhueta dominava toda a cidade, bem à vista, no alto da colina. O homem do sobretudo sabia que devia se apressar, para evitar a tempestade. A nortada provocava-lhe arrepios de frio. Era um daqueles dias nada desejáveis, em que se trazem as sensações à flor da pele e a intensidade das emoções atravessa o corpo como uma corrente eléctrica.
     Quando chegou, abriu o enorme portão, que rangeu como se tivesse uma voz antiga e melancólica. Ele abria-se directamente para um jardim e o seu olhar deteve-se imediatamente nesse lugar, onde o tempo parecia ter-se suspendido. O perfume das flores chegava até ele, no incêndio da tarde. Tudo permanecia tão quieto naquele sítio que se apercebeu imediatamente da estranheza do facto.
     Uma mulher estava sentada na borda do lago. Olhou-o e essas duas safiras luminosas e tranquilas, num semblante quase infantil, perturbaram-no. Teve a intuição de que a conhecia, talvez de um quadro antigo, já tinha visto aquele rosto não sabia bem onde. Um recanto obscuro da sua memória, certamente. Ela persistiu no silêncio, demorando o olhar no seu rosto, como se tentasse perscrutar os seus pensamentos. Era, no entanto, a beleza dos seus olhos e o seu mutismo que se tornavam inquietantes. Enquanto isso, ele avançava em direcção à entrada mais próxima, a porta que havia ao fundo da galeria. Por momentos, teve a intuição de que já havia visto aquela porta algures, mas não conseguiu identificar. Parecia haver uma passagem comunicante entre as imagens que lhe chegavam agora e as memórias que se despoletavam, à medida que identificava certos sinais.
     Ela perdeu o interesse nele e mergulhou novamente no seu sonho, escrevendo traços invisíveis na água. Ele continuou o seu caminho, sem conseguir tirar os olhos da rapariga, profundamente tocado pela sua beleza delicada e etérea.

     Como tinha começado tudo? Algumas semanas antes, tinha recebido um telegrama a chamá-lo. Nada sabia dos seus habitantes, pois havia pouco tempo que se mudara para a cidade, onde fora contratado para dar aulas de música num colégio. Como o horário era completo e lhe pagavam bem, tinha resolvido aceitar e mudara-se pouco tempo depois, no princípio de Setembro.
     Embora a curiosidade fosse desperta sobre o omnipresente casarão, jamais quisera visitá-lo, pois a sua imponência desagradava-lhe. Demasiado grande, talvez, não compreendia exactamente porque o acometia aquela sensação incómoda. Sabia que era habitado por uma família antiga, mas não se mostrara nada interessado em conhecer aquelas pessoas envolvidas pelo mistério.
      - E o que fazem? - Lembra-se de ter perguntado a alguém, talvez o empregado do café, aonde costumava ir pelo final da tarde, sentando-se junto à janela.
- Nada, que eu saiba. Estão sempre enfiados no casarão como se tivessem medo de serem vistos. Parecem-se com fantasmas, sem presença física.
     - Gente velha ou nova? - Insistiu o homem, agora dominado pela curiosidade. Achava que a descrição do empregado era exagerada.
     A ser sincero, não sei, nunca os vi. Mas creio que há uma menina, havia uma menina... Mas há muito que ninguém a vê. Hoje deve ser uma mulher adulta. - Disse o empregado com um ar misterioso.

     Agora, que ele se estava ali, o mistério clarificara-se. Aquela devia ser a menina de que ele falara. Uma menina que se havia transformado em mulher, com um belo olhar safira, escrevendo na água. Todavia, o olhar dela, o modo como agia e o olhar não pareciam ser deste mundo, alheios a tudo, presos num encanto qualquer que ele não saberia identificar.
     Ao entrar, percebeu que não estava só, mas não viu nada, enquanto a porta se fechava lentamente, por trás de si. Olhou a toda a volta, para a sala com reposteiros forrados a púrpura e uma semi-obscuridade inquietante. Ao longo das paredes havia estantes repletas. Ele entrou e aproximou-se dos livros. Havia ali tudo quanto um bibliófilo apaixonado poderia encontrar. Como se a pessoa que ali vivia não precisasse de mais nada a não ser dos seus livros. Seria escritor, bibliotecário?
     Diante dele havia um piano de cauda, encostado à janela. A pergunta ocorreu-lhe, então: "Seria músico, compositor?" O silêncio da casa indicava o ambiente refinado de alguém que, além dos livros, amava a música.
     - Toque, por favor! - Disse uma voz com firmeza, sem ter sequer a delicadeza de lhe dar os bons-dias ou cumprimentá-lo. A sua voz, embora firme, não continha qualquer nota de arrogância. Era um pedido feito como se fosse uma criança.
    Foi quando viu um homem grisalho atrás de si. Tinha os traços finos e regulares, os olhos cinzentos. Uma cor semelhante à dos seus próprios olhos. Reconheceu-o como alguém muito próximo de si. Um irmão ou um primo mais velho? Não tinha conhecimento de parentes naquela zona. Estava tão espantado e aparvalhado que não lhe ocorria dizer nada. Ficou parado e hesitante até que, por fim, tartamudeou:
     - Ah, sim... o quê? Não vim preparado. Não estava à espera, não preparei nenhum tema. - não lhe apetecia tocar assim, sem mais nem menos, não se sentia à vontade, mas também não queria ser mal-educado e que aquilo parecesse uma recusa.
     - Ali à direita - apontou com a mão - há tudo o que é preciso. Pode escolher qualquer coisa. Mas, por favor, nada de alegre, não suporto a alegria, não me convém. Tenho uma saúde frágil, que não suporta qualquer espécie de euforia.
     - Bem, posso escolher? - O homem obedeceu, então. Não lhe era possível recusar o pedido.
     - O rosto permanecia na obscuridade. Fez-lhe um sinal de assentimento, reforçando o seu desejo.
      Desembaraçou-se do sobretudo e pôs-se a escolher a peça, optando por um concerto de Schummann. Sentou-se à janela, que dava para o jardim. Lá fora, o rosto da rapariga permanecia fechado no seu enigma do tempo. Ele sabia que a conhecia. Teve, de repente, a sensação de que tudo era tão artificial que lhe parecia um filme, onde ele era o protagonista. O centro de uma charada, O homem espiava-o e ele quase podia sentir-lhe o hálito por detrás. Dava tudo para observar os seus gestos, mas era-lhe impossível.
     Começou e avançou lentamente, dedilhando as teclas, concentrando-se no poder magnético do olhar de safira. Chamava-a pelo som e desse modo talvez pudesse despertá-la do encantamento da água, onde se debruçava e fechava os seus gestos. Um corpo mudo, ao qual faltava a vibração da vida. Ela levantou o rosto, onde parecia assomar uma leve aragem de lembrança, pondo a cabeça de lado como uma criança que se tivesse esquecido de crescer. Pouco a pouco, voltou à sua indiferença inicial e ele sentiu que não encontrara ainda a nota ou o tom que haveria de libertá-la.
     - Pare. Não vê a inutilidade? - Cortou rispidamente o homem, como se tivesse compreendido o seu intento.
     Ele obedeceu-lhe e poisou as mãos como panos abertos, sobre o piano. A impotência da música, pela primeira vez, tocava-o de perto. Manteve-se de costas para o homem, enquanto ele continuou, num tom de voz em que parecia pensar alto:
     - Como se pode caminhar para o rosto de alguém? Julguei que seria ainda a música, apesar de não saber tocar...
     - Se o rosto se quer manter fechado - respondeu o homem, ainda de costas, sentado ao piano - parece não haver nenhum caminho, na verdade.
     - Olhe mais uma vez... O que vê? Descreva o que vê. - pediu o homem, curioso, como se precisasse de saber em que plano de visão poderia haver des- coincidência.
     - Que pergunta tão estranha! Um jardim maravilhoso, uma bela rapariga a escrever na água, a janela a dar para o infinito, paredes cobertas de estantes cheias de livros, um cão...
     - Um cão?
     - Sim, ao centro do jardim, debaixo da fonte, há um cão, um animal negro e paciente, que parece ter o olhar perdido no infinito. Não o vê? Que passagem é esta? - perguntou, assustado pela descoberta.
     - O que significa a existência de dois planos de realidade. Na verdade, não vejo qualquer cão. E a rapariga é jovem?
     - Há entre nós um sonho, uma imagem, uma fractura no tempo. Um de nós se encontra num campo, o outro num outro campo do real. No entanto, podemos dizer que nos encontramos nessa intersecção, onde dois homens não são senão o mesmo e a mulher, ela própria, uma imagem de desejo que nos é comum. Poderíamos classificar este lugar? É uma utopia?
     O homem do sobretudo voltar-se-ia, desejava ver o outro. Simultaneamente, temia-o, da mesma forma que se teme o nosso reflexo no espelho, na escuridão densa da noite. E se os dois se olhassem como dois espelhos, repetindo-se vertiginosamente?
     - Não te voltes. Deixemo-nos estar assim, para que o tempo se ofereça diante de nós e possa haver ainda esta passagem. Se te voltares, certamente encontrarás um reflexo baço. Permanece diante de ambos a imagem de um jardim, no fim do mundo, um lugar improvável de encontro, onde a sombra nos uniu.
     - Se não somos senão o mesmo, porque não sabes tocar?
- Devo ter sabido um dia e renunciei-lhe.
- Uma suposição?
- É mais uma certeza. De tanto desejar a música, acabei por sucumbir à sua maldição, ao rosto desmedido da sua beleza. Fui vítima da medusa.
- E ela? A rapariga...
- Ela? Oh, um ideal puro, intocável. Ela manteve-se jovem, como os ideais permanecem, intocáveis, no tempo, eternos. Não a reconheces?
- Algures no tempo, sim, lembro-me dela como de uma ferida, um rasto. Persegui-a como se existisse, olhei-a, durante todo este tempo, esperando que pudesse despertá-la. Por momentos, olhou-me.
- Tál como a mim, olhou-nos. O lado infecto da beleza, o golpe fatal.
- Mas aqui tudo é silêncio e beleza, quietude.
- Todas as miragens se apresentam assim: belas, sublimes, derradeiras.
- E o que fazer delas? - Perguntou o outro.
- Depende do que elas nos fazem, em que nos transformam. Não podemos descobri-las sem cair no abismo que elas abrem, diante de nós.
- As imagens não podem nos tornar mais fortes? Como viver sem elas? Sem acreditar no que nos prometem?
- Todas as imagens nos destroem. Por isso há que destruí-las, quanto antes - dizia um de nós. - Sou demasiado velho e consigo perceber isso sem esforço.
     A rapariga continuava a sua escrita na água, imperturbável. O homem do sobretudo levantou-se e caminhou, sem que o outro fizesse qualquer movimento para o impedir, até ao lugar onde ela se encontrava. Manteve-se de pé, a observá-la. Quis compreender o que ela escrevia e debruçou-se sobre a fonte, enquanto ela ia desenhando esse destino de que era portadora. Ao tocar na água, o seu dedo longo fazia traços ininteligíveis, sulcos, arrepios que poderiam se confundir com a presença do vento.

     Na verdade, nada existia, a não ser a imagem que ele criara dentro de si, numa espécie de enamoramento que se alimentava a si próprio. Levantou os olhos e olhou à sua volta. O jardim era vasto e ele não se apercebera como o espaço à sua volta se alargara consideravelmente. Já não avistava qualquer casa, mas apenas um jardim infinito e, ao longe, uma floresta cerradíssima, para onde desejava caminhar. O cão olhava-o, mergulhado na sua placidez. O mudo cão de Dürer observava-o, como se tivesse a eternidade pela frente. Ele avançou e caminhou, sem saber o que o esperava do outro lado. Pensou que era preciso acreditar nas imagens e avançou, de olhos fechados, como se quisesse entrar na eternidade.

(In Caligrafia da Solidão, São Paulo: Escrituras, 2006, pp. 79-83)





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