O cão de Dürer
O homem caminhou firme
contra a ventania e as grossas bátegas de chuva, que o atingiam em pleno no
rosto. O sobretudo negro enrolava-se-lhe nas pernas, enquanto o céu escurecia
cada vez mais e prenunciava a trovoada. Do outro lado da avenida, nas esplanadas,
os empregados perfilavam-se à porta, olhando o vazio cinzento do céu. Nas ruas
não havia transeuntes, que já tinham fugido à inesperada trovoada.
Num violento rodopio, as folhas elevavam-se no ar. Ao longe, o casarão
permanecia imutável e a sua silhueta dominava toda a cidade, bem à vista, no
alto da colina. O homem do sobretudo sabia que devia se apressar, para evitar a
tempestade. A nortada provocava-lhe arrepios de frio. Era um daqueles dias nada
desejáveis, em que se trazem as sensações à flor da pele e a intensidade das
emoções atravessa o corpo como uma corrente eléctrica.
Quando chegou, abriu o enorme portão, que rangeu como se tivesse uma voz
antiga e melancólica. Ele abria-se directamente para um jardim e o seu olhar
deteve-se imediatamente nesse lugar, onde o tempo parecia ter-se suspendido. O
perfume das flores chegava até ele, no incêndio da tarde. Tudo permanecia tão
quieto naquele sítio que se apercebeu imediatamente da estranheza do facto.
Uma mulher estava sentada na borda do lago. Olhou-o e essas duas safiras
luminosas e tranquilas, num semblante quase infantil, perturbaram-no. Teve a
intuição de que a conhecia, talvez de um quadro antigo, já tinha visto aquele
rosto não sabia bem onde. Um recanto obscuro da sua memória, certamente. Ela
persistiu no silêncio, demorando o olhar no seu rosto, como se tentasse
perscrutar os seus pensamentos. Era, no entanto, a beleza dos seus olhos e o
seu mutismo que se tornavam inquietantes. Enquanto isso, ele avançava em
direcção à entrada mais próxima, a porta que havia ao fundo da galeria. Por
momentos, teve a intuição de que já havia visto aquela porta algures, mas não
conseguiu identificar. Parecia haver uma passagem comunicante entre as imagens
que lhe chegavam agora e as memórias que se despoletavam, à medida que
identificava certos sinais.
Ela perdeu o interesse nele e mergulhou novamente no seu sonho,
escrevendo traços invisíveis na água. Ele continuou o seu caminho, sem
conseguir tirar os olhos da rapariga, profundamente tocado pela sua beleza
delicada e etérea.
Como tinha começado tudo? Algumas semanas antes, tinha recebido um
telegrama a chamá-lo. Nada sabia dos seus habitantes, pois havia pouco tempo
que se mudara para a cidade, onde fora contratado para dar aulas de música num
colégio. Como o horário era completo e lhe pagavam bem, tinha resolvido aceitar
e mudara-se pouco tempo depois, no princípio de Setembro.
Embora a curiosidade fosse desperta sobre o omnipresente casarão, jamais
quisera visitá-lo, pois a sua imponência desagradava-lhe. Demasiado grande,
talvez, não compreendia exactamente porque o acometia aquela sensação incómoda.
Sabia que era habitado por uma família antiga, mas não se mostrara nada
interessado em conhecer aquelas pessoas envolvidas pelo mistério.
- E o que fazem? - Lembra-se de ter perguntado a alguém, talvez o
empregado do café, aonde costumava ir pelo final da tarde, sentando-se junto à
janela.
- Nada, que eu
saiba. Estão sempre enfiados no casarão como se tivessem medo de serem vistos.
Parecem-se com fantasmas, sem presença física.
- Gente velha ou nova? - Insistiu o homem, agora dominado pela
curiosidade. Achava que a descrição do empregado era exagerada.
A ser sincero, não sei, nunca os vi. Mas creio que há uma menina, havia
uma menina... Mas há muito que ninguém a vê. Hoje deve ser uma mulher adulta. -
Disse o empregado com um ar misterioso.
Agora, que ele se estava ali, o mistério clarificara-se. Aquela devia ser
a menina de que ele falara. Uma menina que se havia transformado em mulher, com
um belo olhar safira, escrevendo na água. Todavia, o olhar dela, o modo como
agia e o olhar não pareciam ser deste mundo, alheios a tudo, presos num encanto
qualquer que ele não saberia identificar.
Ao entrar, percebeu que não estava só, mas não viu nada, enquanto a porta
se fechava lentamente, por trás de si. Olhou a toda a volta, para a sala com
reposteiros forrados a púrpura e uma semi-obscuridade inquietante. Ao longo das
paredes havia estantes repletas. Ele entrou e aproximou-se dos livros. Havia
ali tudo quanto um bibliófilo apaixonado poderia encontrar. Como se a pessoa
que ali vivia não precisasse de mais nada a não ser dos seus livros. Seria
escritor, bibliotecário?
Diante dele havia um piano de cauda, encostado à janela. A pergunta
ocorreu-lhe, então: "Seria músico, compositor?" O silêncio da casa
indicava o ambiente refinado de alguém que, além dos livros, amava a música.
- Toque, por favor! - Disse uma voz com firmeza, sem ter sequer a
delicadeza de lhe dar os bons-dias ou cumprimentá-lo. A sua voz, embora firme,
não continha qualquer nota de arrogância. Era um pedido feito como se fosse uma
criança.
Foi
quando viu um homem grisalho atrás de si. Tinha os traços finos e regulares, os
olhos cinzentos. Uma cor semelhante à dos seus próprios olhos. Reconheceu-o
como alguém muito próximo de si. Um irmão ou um primo mais velho? Não tinha
conhecimento de parentes naquela zona. Estava tão espantado e aparvalhado que
não lhe ocorria dizer nada. Ficou parado e hesitante até que, por fim,
tartamudeou:
- Ah, sim... o quê? Não vim preparado. Não estava à espera, não preparei
nenhum tema. - não lhe apetecia tocar assim, sem mais nem menos, não se sentia
à vontade, mas também não queria ser mal-educado e que aquilo parecesse uma
recusa.
- Ali à direita - apontou com a mão - há tudo o que é preciso. Pode
escolher qualquer coisa. Mas, por favor, nada de alegre, não suporto a alegria,
não me convém. Tenho uma saúde frágil, que não suporta qualquer espécie de euforia.
- Bem, posso escolher? - O homem obedeceu, então. Não lhe era possível
recusar o pedido.
- O rosto permanecia na obscuridade. Fez-lhe um sinal de assentimento,
reforçando o seu desejo.
Desembaraçou-se do sobretudo e pôs-se a
escolher a peça, optando por um concerto de Schummann. Sentou-se à janela, que
dava para o jardim. Lá fora, o rosto da rapariga permanecia fechado no seu
enigma do tempo. Ele sabia que a conhecia. Teve, de repente, a sensação de que
tudo era tão artificial que lhe parecia um filme, onde ele era o protagonista.
O centro de uma charada, O homem espiava-o e ele quase podia sentir-lhe o
hálito por detrás. Dava tudo para observar os seus gestos, mas era-lhe
impossível.
Começou e avançou lentamente, dedilhando as teclas, concentrando-se no
poder magnético do olhar de safira. Chamava-a pelo som e desse modo talvez
pudesse despertá-la do encantamento da água, onde se debruçava e fechava os
seus gestos. Um corpo mudo, ao qual faltava a vibração da vida. Ela levantou o
rosto, onde parecia assomar uma leve aragem de lembrança, pondo a cabeça de
lado como uma criança que se tivesse esquecido de crescer. Pouco a pouco,
voltou à sua indiferença inicial e ele sentiu que não encontrara ainda a nota
ou o tom que haveria de libertá-la.
- Pare. Não vê a inutilidade? - Cortou
rispidamente o homem, como se tivesse compreendido o seu intento.
Ele obedeceu-lhe e poisou as mãos como
panos abertos, sobre o piano. A impotência da música, pela primeira vez,
tocava-o de perto. Manteve-se de costas para o homem, enquanto ele continuou,
num tom de voz em que parecia pensar alto:
- Como se pode caminhar para o rosto de
alguém? Julguei que seria ainda a música, apesar de não saber tocar...
- Se o rosto se quer manter fechado -
respondeu o homem, ainda de costas, sentado ao piano - parece não haver nenhum
caminho, na verdade.
- Olhe mais uma vez... O que vê? Descreva
o que vê. - pediu o homem, curioso, como se precisasse de saber em que plano de
visão poderia haver des- coincidência.
- Que pergunta tão estranha! Um jardim
maravilhoso, uma bela rapariga a escrever na água, a janela a dar para o
infinito, paredes cobertas de estantes cheias de livros, um cão...
- Um cão?
- Sim, ao centro do jardim, debaixo da
fonte, há um cão, um animal negro e paciente, que parece ter o olhar perdido no
infinito. Não o vê? Que passagem é esta? - perguntou, assustado pela
descoberta.
- O que significa a existência de dois
planos de realidade. Na verdade, não vejo qualquer cão. E a rapariga é jovem?
- Há entre nós um sonho, uma imagem, uma
fractura no tempo. Um de nós se encontra num campo, o outro num outro campo do
real. No entanto, podemos dizer que nos encontramos nessa intersecção, onde
dois homens não são senão o mesmo e a mulher, ela própria, uma imagem de desejo
que nos é comum. Poderíamos classificar este lugar? É uma utopia?
O homem do sobretudo voltar-se-ia,
desejava ver o outro. Simultaneamente, temia-o, da mesma forma que se teme o
nosso reflexo no espelho, na escuridão densa da noite. E se os dois se olhassem
como dois espelhos, repetindo-se vertiginosamente?
- Não te voltes. Deixemo-nos estar assim,
para que o tempo se ofereça diante de nós e possa haver ainda esta passagem. Se
te voltares, certamente encontrarás um reflexo baço. Permanece diante de ambos
a imagem de um jardim, no fim do mundo, um lugar improvável de encontro, onde a
sombra nos uniu.
- Se não somos senão o mesmo, porque não
sabes tocar?
- Devo ter sabido
um dia e renunciei-lhe.
- Uma suposição?
- É mais uma
certeza. De tanto desejar a música, acabei por sucumbir à sua maldição, ao
rosto desmedido da sua beleza. Fui vítima da medusa.
- E ela? A
rapariga...
- Ela? Oh, um
ideal puro, intocável. Ela manteve-se jovem, como os ideais permanecem,
intocáveis, no tempo, eternos. Não a reconheces?
- Algures no
tempo, sim, lembro-me dela como de uma ferida, um rasto. Persegui-a como se
existisse, olhei-a, durante todo este tempo, esperando que pudesse despertá-la.
Por momentos, olhou-me.
- Tál como a mim,
olhou-nos. O lado infecto da beleza, o golpe fatal.
- Mas aqui tudo é
silêncio e beleza, quietude.
- Todas as
miragens se apresentam assim: belas, sublimes, derradeiras.
- E o que fazer
delas? - Perguntou o outro.
- Depende do que
elas nos fazem, em que nos transformam. Não podemos descobri-las sem cair no
abismo que elas abrem, diante de nós.
- As imagens não
podem nos tornar mais fortes? Como viver sem elas? Sem acreditar no que nos
prometem?
- Todas as imagens
nos destroem. Por isso há que destruí-las, quanto antes - dizia um de nós. -
Sou demasiado velho e consigo perceber isso sem esforço.
A rapariga continuava a sua escrita na
água, imperturbável. O homem do sobretudo levantou-se e caminhou, sem que o
outro fizesse qualquer movimento para o impedir, até ao lugar onde ela se
encontrava. Manteve-se de pé, a observá-la. Quis compreender o que ela escrevia
e debruçou-se sobre a fonte, enquanto ela ia desenhando esse destino de que era
portadora. Ao tocar na água, o seu dedo longo fazia traços ininteligíveis,
sulcos, arrepios que poderiam se confundir com a presença do vento.
Na verdade, nada existia, a não ser a
imagem que ele criara dentro de si, numa espécie de enamoramento que se
alimentava a si próprio. Levantou os olhos e olhou à sua volta. O jardim era
vasto e ele não se apercebera como o espaço à sua volta se alargara
consideravelmente. Já não avistava qualquer casa, mas apenas um jardim infinito
e, ao longe, uma floresta cerradíssima, para onde desejava caminhar. O cão
olhava-o, mergulhado na sua placidez. O mudo cão de Dürer observava-o, como se
tivesse a eternidade pela frente. Ele avançou e caminhou, sem saber o que o
esperava do outro lado. Pensou que era preciso acreditar nas imagens e avançou,
de olhos fechados, como se quisesse entrar na eternidade.
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