domingo, 21 de dezembro de 2014

Clarice Lispector

Daniel era um menino estranho, sensível e orgulhoso, difícil de se amar. Ele não sabia dar um pretexto para esconder. Mesmo quando caía em fantasias estas eram precavidas, familiares; ele não tinha coragem de inventar e era sempre ela quem numa facilidade surpreendente mentia pelos dois; ele era sincero e duro, detestava o que não via. Com seus olhos limpos e secos vivia como só com Virgínia dentro da Granja. Desde que a irmã nascera ele a tomara e secretamente ela era apenas sua. Ainda muito pequena, os cabelos compridos e sujos nos olhos, as pernas curtas hesitando sobre os pés descalços, ela agarrava com uma das mãos os fundos das calças de Daniel e o irmão, o rosto queimado e sem doçura, os olhos seguros, subia pelas encostas das montanhas, com movimentos obstinados como se não sentisse o peso de Virgínia, a inclinação resistente dos morros, o vento que soprava firme e frio contra o seu corpo. Não a amava sequer mas ela era doce e tola, fácil de se conduzir a qualquer ideia. E mesmo nas épocas em que ele se fechava severo e bruto dando-lhe ordens, ela obedecia porque sentia-o perto de si, ocupando-se dela — ele era a criatura mais perfeita que ela conhecia. Passava então os dias numa estranha euforia, como o vento, alta, calma e silenciosa. Deus meu, não sabia ela que pensava, ela só tinha ardor, nada mais, nem mesmo um motivo. E ele — ele só tinha raiva, nada mais, nem mesmo um motivo. Apesar de tudo Daniel pisava sem forca, permitia que nela vivesse aquele seu desespero desajeitado e atento, uma aguda fraqueza, a possibilidade de perceber pelo nariz, de pressentir dentro do silêncio, de viver profundamente sem executar um movimento. E de fechada num quarto estar em perigo. Sim, sim, aos poucos, baixo, de sua ignorância ia nascendo a ideia de que possuía uma vida. Era uma sensação sem pensamentos anteriores nem posteriores, súbita, completa e una, que não poderia se acrescentar nem alterar com a idade ou com a sabedoria. Não era como viver, viver e então saber que possuía uma vida, mas era como olhar e ver de uma só vez. A sensação não vinha dos fatos presentes nem passados mas dela mesmo como um movimento. E se morresse cedo ou se enclausurasse, o aviso de ter uma vida valia como ter vivido. Por isso também ela era um pouco cansada talvez, desde sempre; às vezes só por um esforço imperceptível mantinha-se à tona. E acima de tudo, sempre fora séria e falsa.

(Excerto de O LUSTRE, 3a. ed. José Alvaro: Rio de Janeiro, 1967, pp. 24-25)

By MARTIN STRANKA

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