terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Nikos Kazantzákis

  EXCERTO DE "RELATÓRIO AO GRECO"

VOLTEI À CASA PATERNA; E ALI, DENTRO DO silêncio e do amor materno, sob o olho severo do meu pai, tinha chegado o momento de reviver a viagem e de colocar ordem nas alegrias e nas tristezas. Agora, a responsabilidade tinha adquirido voz dentro de mim, já não podia escapar; as terras falavam, os mortos se levantavam, uma grande Creta se desencobriu, assim como a Grécia e sua luta secular pela liberdade — esse é o seu destino. Qual era o meu dever? Trabalhar junto com ela, lançar-me na luta com ela, eu e meu espírito.

   Para libertar-me de que? De quem? Difícil a pergunta, não conseguia responder; apenas sentia que o meu combate não era nas montanhas com armas nas mãos e que ainda não conseguia distinguir bem os meus inimigos. Apenas isto via claramente: qualquer que fosse a minha decisão, faria minha obrigação o mais honestamente que pudesse, certeza eu só tinha de minha persistência e de minha honestidade, e de nada mais.

   Vocês se lembram daquele professor que procurou meu pai para se queixar que eu não obedecia ao que me diziam os professores e que ele respondeu, eu estava lá e ouvi: “Que ele não minta, nem apanhe; essas duas coisas, quanto ao resto, que faça o que quiser!” Essas palavras encravaram-se em minha mente; acho que, se não as tivesse escutado, minha vida não teria sido a mesma; um sombrio e irrepreensível instinto parecia levar meu pai a educar seu filho; o instinto do lobo que educa o filhote.

   Não saí de casa, não tinha mais amigos, a Filikí Eteria, tendo satisfeito sua fome, deixou suas asas caírem. Afastei as novas preocupações que me tiranizavam depois de minha peregrinação pela Grécia, convoquei meu raciocínio estudando a Renascença italiana e os grandes espíritos que a criaram; porque tinha decidido rodar a Itália, complementando a viagem que meu pai me tinha dado.

   E, uma manhã, desincorporei-me da casa paterna; minha mãe chorava, “Até quando”, dizia, “até quando você vai ficar fora?” Mas a juventude é dura, pensei em responder: “enquanto eu viver, mamãe, enquanto viver, vou ficar fora”; mas, controlei-me, beijei sua mão e o mar me levou.

   Ser jovem, ter vinte e cinco anos, ser forte, não amar ninguém em especial, nem homem nem mulher, que lhe restrinja o coração c não lhe deixe amar tudo o que lhe cerca da mesma forma desinteressada c veemente; viajar a pé pela Itália na primavera; deixar vir o verão e chegar as frutas, as chuvas, o outono e o inverno — acredito que seria petulância do homem querer uma maior felicidade.

   Acho que nada me faltava; corpo, espírito, cérebro, essas três feras se regozijavam da mesma forma, igualmente satisfeitas e felizes. Durante o tempo que durou essa minha viagem de lua de mel com meu espírito, sentia, como nunca tinha sentido na vida, como o corpo, o espírito e o cérebro eram criaturas da mesma terra. Apenas quando você envelhece, adoece ou cai em desgraça, eles se separam e lutam um contra o outro, às vezes, o corpo assume o comando, outras vezes,o  espírito levanta bandeira, quer sair e o cérebro, desamparado, olha e registra a desintegração. Mas enquanto você é jovem e forte, essa trindade forma uma irmandade que se amamenta com o mesmo leite!

   Fecho os olhos, a juventude volta, a harmonia se refaz dentro de mim, diante de mim tornam a passar as praias, montanhas e aldeias com seus delgados campanários, com os pinheiros, as águas que correm, as calçadas em volta com seus velhos que, à tardinha, sentam-se apoiados em seus bastões e conversam tranquilamente, sempre a mesma coisa entra ano sai ano, já há tantos séculos, assim como o ar acima deles também é secular. A primeira vez que vi essas famosas imagens, meu coração faminto tremeu, meus joelhos se dobraram e fiquei durante horas no umbral da porta até que sossegassem as batidas do meu coração e eu pudesse suportar tanta beleza, não é você que a olha, é ela que olha para você e o perdoa.

[In RELATÓRIO AO GRECO, tradução direta do grego por Lucilia Soares Brandão, introdução de Carolina Dônega Bernardes, Rio de Janeiro: Cassará, 2014, pp. 174-175]. 





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