quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Pier Paolo Pasolini

A DESTRUIÇÃO DA IDEIA DE SI
Vieste, pois, a esta casa para destruir.
O que destruíste em mim?
Destruíste, simplesmente
— com toda a minha vida passada —,
a ideia que sempre tive de mim mesmo.
Pois, se há muito tempo
eu assumira a forma que devia assumir
e a minha imagem era de certo modo perfeita,
agora o que me resta?
Não vejo nada que  possa me reintegrar
na minha identidade. Olho-te: não me escutas
com imparcialidade — porque não te divides em partes —,
mas com dedicação — porque te dás todo a cada um.
Como pode, todavia, a tua presença consoladora
ser assim pura, a ponto de manifestar
quase uma clara vontade de separação?
De que serve me consolar, se tu, se quisesses,
poderias adiar, quem sabe para sempre,
a tua partida? Mas, ao contrário, vais partir:
quanto a isso não há
mais a menor dúvida.
A tua piedade está, portanto, subordinada
a um outro desígnio misterioso.
Queres talvez me dizer (não falando, mas simplesmente,
pelo fato de que és um jovem)
que poderias ser substituído agora
por meu filho ou por minha filha?
Proposta completamente louca (condicionada,
talvez, por uma obscura vontade minha) —,
mas justa, se, ainda que realizada
(o membro nu de meu filho, a vulva nua de minha filha),
não fosse mais do que um símbolo: e se através dessa proposta,
tu me exortasses à perdição mais completa,
a colocar a vida fora de si mesma,
e mantê-la de uma vez para sempre
fora da ordem e do amanhã,
fazendo de tudo isso a única real normalidade.
Talvez porque quem te amou deve
(como, de resto, todo homem — quem não o sabe)
poder reconhecer a todo custo a vida,
a cada instante? Reconhecê-la, e não somente
conhecê-la ou simplesmente vivê-la?
São — dizes generosamente na minha banal linguagem
[burguesa —
as excepcionalidades mais impensáveis,
mais intoleráveis, mais distantes da possibilidade
de serem concebidas e até mesmo nomeadas
que se apresentam como os meios
mais eficazes
para reconhecer a vida?
Excepcionalidades que, entretanto, não podem
ser senão símbolos
— se na realidade, como toda coisa real,
são feitas de nada e destinadas ao nada?


[In Teorema, tradução de Fernando Travassos, São Paulo: Brasiliense, 1984, pp. 90-91]

SOBRE PIER PAOLO PASOLINI



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