EXCERTO DE "VERMELHO AMARGO"
Ah! Só meu amor me sabia! Se por descuido passei a amar, em cada instante ele se fazia mais indispensável. Meu coração escolheu e agora minha carne exigia sua presença. Ah! Como o corpo exige! Se o medo me invadia, se vago o horizonte, se fria a aragem, meu amor era minha moeda. Sob os juros do amor eu me enriquecia.
A mãe nos contava sobre nossos bens: uma casa com um quintal, uma horta sob mangueira, um pé de jabuticabas — que nos espiava com muitos olhos pretos. No mais, um regador para dar de beber às plantas. Nas tardes, quando o tempo se faz humano por parecer duvidar, minha mãe, sustentando o regador pela asa, benzia as flores. Exalava um perfume de terra molhada e a alma se fazia definitivamente telúrica. Viver tinha sabor de chão encharcado. Mas isso não leva importância.
A madrasta mantinha especial conversa também com o fogo. O tomate, comia-se cru, frio pelo aço da faca. Ao livrar-se dos pesados cobertores da noite, seus passos duros caminhavam para o fogão. Soprava as cinzas que pairavam sobre as brasas, desfazendo a mentira. Atiçava, e as chamas ressuscitavam, estralando em suspiros. Despertavam vermelhas como a fatia do tomate brilharia dentro dos pratos.
O fundo é frio e a terra úmida. A aragem não sopra no lá embaixo. No fundo, o peso da terra é definitivo véu. Não há carga que o corpo morto não suporte. Não há alma lá no fundo. A luz não desfaz o breu que arde no bem profundo. No bem fundo, não há palavra capaz de soar. Mas o silêncio não existe no fundo. O nada interrompe tudo. A mãe dorme no muito fundo.
Seu adeus me deu, como sina, ler o além das letras. Aprendi, com sua ausência, a decifrar o depois dos olhares, se de afagos ou de repulsa. Li os segredos das mãos, se abençoando ou repudiando. Decifrei a censura se manifestando na linha dos lábios, amargos ou doces. Lendo adaptei-me a corresponder ao projeto do outro sobre mim. Desviando-me de mim. e, ingênuo, desconhecia a impossibilidade de novamente viver o dia de ontem. Sua partida me legou, como herança, a habilidade de explorar meu tesouro em seu vazio.
(In Vermelho Amargo, São Paulo: CosacNaify, 2011, pp. 21-23)
SOBRE BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS
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