quinta-feira, 5 de março de 2015

Iúnna Môrits

A cor dos cogumelos reluzentes
neste trêmulo bosque induz em erro.
Me desagrada ter de caminhar
sobre a sua beleza venenosa
e seus afogueados chapeuzinhos.
Não sei ainda onde a natureza
ferventa cada óvulo maligno,
à luz de que clarões, pra que, depois,
sob o pungente abeto, em bosques densos,
pisando-os no chão, nos reste apenas
esta lembrança longa, interminável
de sua intensa e insólita beleza.

IEREVÃ
Já sonho com Ierevã,
alegre e clara cidade
cuja rubra caravana,
que desce lá da montanha,
foi copiada do rótulo
da garrafa de conhaque,
cidade cheia de sumo,
de raízes que meditam
fincadas dentro do solo,
de pedreiros que, na aurora,
vão trabalhar carregando
nas mãos da cor de tijolo
suas bilhas coloridas
como uma bola...
                     E um menino,
ágil como uma formiga,
vai atrás deles tocando
o cornetim de brinquedo.

JANEIRO
Azul tão intenso vem ferir a janela,
tão próxima do rio, que a vontade que sentimos
é de afastar os olhos, como quem não tem coragem
de olhar para um ícone, de encarar um milagre.
Tanta névoa, tais continentes de neve
envolvem o dia que nossos ouvidos zumbem
e todo o mundo à nossa volta fica azulado.
- Tu e eu, aprendizes de feiticeiro,
ali ficamos parados, congelados,
em nosso estúdio, no espaço
ao lado do quadro-negro pregado na parede,
a garganta seca, o olhar atento.
Cheia de arrogância, arrastarei
cada sílaba, cada minuto de vida
para a minha distância; e cada atulhada
barraca de feira com toda a sua tranqueira.
Tudo o que antes parecia irrelevante
modela agora nosso destino, entra-nos nas veias,
cola-se como um prefixo aos nossos nomes. 
Cúmplices! Quero o para sempre de nosso amor
para todo mundo, até a corrupção do túmulo,
até a ferida aberta, até o verso
inconcluso: até lá onde a relva cresce e encobre
nosso peito e nossas mãos.
Azul tão intenso vem ferir a janela,
tão próxima do rio.

KIEV
Por que será que eu vôo para esta cidade
com sua catedral azul sobre a colina?
Basta bater em suas portas vermelhas
para sentir lábios beijando-me o rosto.

Aqui eu me sinto eu mesma, inteiramente,
como um pássaro a quem dão de comer na mão.
Sobre o retângulo deste tapetinho
fico firme de pé, sem hesitar.

Feliz é aquele a quem coube a missão
de lavar carinhosamente, com um chuveirinho
de cristal, os meus olhos, boca, ouvidos,
de tudo o que o vento veio trazendo.

Sonho que a minha camisa se transforma
em pó de neve a recobrir meus ombros
e, antes de ir embora, sonho com um cachorro
parado ali, me olhando fixamente.

[In Poesia Soviética, seleção, tradução e notas de Lauro Machado Coelho, São Paulo, Algol, 2007, pp. 491-493]

Iúnna Petróvna Môrits, poeta e ativista russa,  nasceu em Kíev, em 1937, numa família judaica. O crítico norte americano Daniel Weissbort, considerou-a “um dos nomes mais importantes da poesia feminina russa atual”. 
Uma das fundadoras da seção russa do PEN International, destinado a promover a aproximação entre os intelectuais. Participa da Comissão de Direitos Humanos dessa instituição. Entre os prêmios recebidos por ela está o Andrei Sákharov para a Coragem Cívica.


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