sábado, 14 de março de 2015

Mariana Ianelli

De Rilke para Sophia, de Alceu para Lia
Além dos célebres contos e poemas de Natal, que todos os anos surgem em novas coletâneas, há na literatura este nicho muito particular das cartas natalinas, no qual Rainer Maria Rilke ocupa um lugar especial. Suas cartas de Natal para a mãe cobrem nada menos que 26 anos, um período sem lacunas que raramente encontra paralelo no gênero epistolar a ponto de render um livro temático. Curiosamente, o que sintetiza as cartas do poeta e ao mesmo tempo as mantém vivas por um quarto de século tem relação com as cartas de Alceu Amoroso Lima para sua filha Lia. Essa presença por meio da palavra, nunca como presença física, numa época do ano em que era esperado que pais e filhos celebrassem juntos, acontece com uma intenção que não foge ao espírito da data.

Diz-se que Rilke mantinha uma distância estratégica da mãe e suas cartas seriam prova disso, de um filho que, não faltando com o afeto, tampouco buscava expandir essa relação. Mas a importância do Natal para o poeta como um momento de celebração meditativa, nítida nos motivos de sua poesia, coincide com o gesto e o conteúdo de suas cartas. Em 1903, três anos depois do início da correspondência com a mãe, Rilke propõe a ela um ritual: que sua carta seja aberta apenas no dia 24 e às 6 horas da tarde os dois se encontrem em pensamento. Fica tacitamente acordado que o Natal será comemorado sempre assim, numa secreta sintonia entre mãe e filho que significará para ambos uma comunhão sagrada.

As cartas não falham, a cada ano vêm de um lugar diferente, Paris, Westerwede, Roma, Duíno, Viena, Munique, cada lugar marcando uma fase da vida e da obra do poeta. O ritmo intenso tanto nas mudanças de residência de Rilke quanto em seu trabalho literário tem como contraponto sutil a serenidade de espírito que o poeta busca para si, desejando o mesmo para sua mãe. O presente de Natal enviado com a primeira carta, em dezembro de 1900, é simbólico: "Histórias do Bom Deus", um livro em que a mãe vai reconhecer - ele espera - o melhor em que seu filho se tornou.

É bom lembrar que, nessa época, Rilke já esboçava com o pintor Heinrich Vogeler o projeto de um ciclo de poemas de Natal que, mais de dez anos depois, resultaria no livro "A Vida de Maria". Uma das cenas escolhidas para esse ciclo é o repouso de Maria e Jesus durante a fuga para o Egito. Esse momento de repouso dos prófugos está representado também de modo simbólico no conteúdo das cartas natalinas, especialmente durante os anos da Primeira Guerra Mundial. Aquela paz de uma hora em que os dois se encontram, sempre em dezembro, numa espécie de cerimônia íntima, de cumplicidade na solidão, significa ainda um espaço interior de refúgio, uma celebração da criança a salvo dentro de um e de outro.

No Natal de 1901, em Westerwede, Rilke está casado, tem uma filha, e a família recém-formada justifica as palavras breves. No dezembro seguinte ele volta a escrever, dessa vez longamente. Fala do trabalho, da filha pequena, do tempo quente e úmido de Paris. Já em 1906, instalado em Capri, na Villa Discopoli, Rilke está separado mulher e da filha, tão sozinho quanto a mãe. A paz da hora então é real, e a solidão, uma palavra festejada. A partir daí, Rilke afasta-se cada vez mais de sua família a ponto de comentar, poucos anos depois, em Duíno, que há muito tempo não recebe notícias de sua mulher, Clara.

Em 1910, Rilke celebra o Natal em Túnis, em meio a uma paisagem de mesquitas, "templos divinos de outra crença, mas [erguidos] ao mesmo Deus". Esse breve comentário resume a convicção de fundo místico do poeta. Também nessa carta está uma de suas definições para o espírito da data: "Sentir no peito uma vez ao ano a expectativa, a esperança inabalável, de que o adulto, ora vigorando em nós, nos quer surpreender, não um pouco, não, muito, com o infinito".

Essa "esperança inabalável" e essa "feição de inocente criança" que dão sentido à hora sagrada serão desafiadas durante os anos de guerra. Justamente em 1914, a carta vem sem referência de lugar. É o primeiro dezembro de um mundo em transe, uma época em que as palavras não convencem. Mas René, o velho René, como agora assina suas cartas, continua a ver no Natal "a comemoração do júbilo", o envolvimento de cada um na imagem daquela criança pura, mesmo em circunstâncias de destruição e luto.

Se já a fidelidade das cartas, ao menos uma vez por ano, mostra uma constância de pensamento, o equilíbrio que o poeta mantém numa época de desabono espiritual prova que sua alegria não oscila com as oscilações do mundo. Por isso, suas cartas de 1914 a 1918 insistem em reabilitar as palavras desacreditadas e assumem o desafio: "Somos assim postos à prova, se de fato compreendemos a necessidade de transcender a nós próprios no congraçamento".

As cartas que se seguem, de 1919 a 1921, marcam uma temporada de turnês de leituras e conferências de Rilke pela Suíça, além da etapa final da longa gestação de "Sonetos a Orfeu" e "Elegias de Duíno". Em 1923, os poemas de "A Vida de Maria" estreiam numa peça para canto e piano.

O interessante nessa arquitetura dos poemas de Natal, contemporâneos das primeiras "Elegias", e nas cartas natalinas para a mãe, é a sugestão de uma mesma atmosfera de capela, sob a influência das artes, especialmente a pintura de ícones. Não por acaso, além das pinturas citadas pelo poeta em suas cartas, há referências a capelas que ele visita, em particular a capelinha abandonada de Santa Ana, de propriedade do Castelo de Muzot, que sintetiza em uma imagem o imperturbável sentimento ascético de Rilke nos tempos do pós-guerra. Sua última carta vem em 1925, de Muzot, e ali está, mais uma vez intacta, a celebração de júbilo do filho, comungando em pensamento com a mãe.

A criação desse espaço de sintonia lembra o teor de outras cartas natalinas, agora de pai para filha. Cobrindo um período de mais de 20 anos, as cartas de Alceu Amoroso Lima para sua filha Lia aproximam-se do espírito de união entre Rilke e Sophia. Vale destacar a carta de dezembro de 1950. A bordo do navio Argentina, no Dia dos Santos Inocentes, Alceu escreve para a filha se despedindo. Começava um tempo novo para os dois, Alceu a caminho dos Estados Unidos, Lia a caminho do mosteiro Santa Maria, em São Paulo. Nessa carta de despedida, Alceu faz um único pedido para a filha às vésperas da vida nova: que ela nunca perca sua naturalidade. Que, dali a alguns anos, ele possa reconhecer a mesma alegria de menina quando a reencontrar, "com os seus véus negros, atrás de uma grade".

É assim que os dois comemoram o Natal, celebrando a figura de uma criança e nela a essência de uma pureza e uma alegria. Em dezembro de 1961, Alceu escreve: "Se não fosse, hoje em dia, Santa Maria, e em Santa Maria se não fosse uma 'nossa menina', sempre alegre, sempre igual, sempre animada, sempre criança, (...) e por isso com o ar puro do espírito varrendo sempre todos os miasmas da minha melancolia, da inquietação, da dúvida, da divisão, da discórdia comigo mesmo, do medo, em suma, dos fantasmas do demônio exterior e interior (...), que seria de mim, neste confuso crepúsculo de 61?"


[In Valor Econômico, 6 de dezembro de 2013]

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