Amo as horas sombrias de meu ser,
nas
quais se me aprofundam os sentidos:
nelas
eu tenho achado, como em velhas cartas,
meu
dia-a-dia já vivido, e feito
alguma
lenda distante e sofrida.
Delas
me vem a noção de que tenho
lugar
numa outra vida mais ampla e infinita.
E
eu às vezes me sinto feito a árvore
que,
sobre um túmulo, madura e ciciante,
preenche
o sonho de algum morto jovem
(a
cuja volta ela aperta as raízes mornas)
perdido
entre amarguras e cantigas.
***
com
rude batimento no meio da noite,
é
que de quando em quando te ouço respirar
e
sei que estás sozinho no salão.
E,
se careces de algo, lá não há ninguém
que
te ofereça um gole às mãos tateantes...
Sempre
atento estou eu: ao menor sinal teu
eu
estou muito perto.
Só
existe entre nós uma fina parede,
por
acaso: se houvesse, por acaso,
de
tua boca ou da minha algum chamado,
ela
se desfaria
sem
alarme ou ruído.
De
imagens tuas ela é toda feita:
imagens
que em tua frente se põem - nomes.
E,
tão logo se acende em mim a luz
com
que te reconhece a profundeza minha,
ela
some com um reflexo na moldura.
E
meus sentidos, que em pouco se debilitam,
desligados
de ti - ficam sem pátria.
***
Capto de tuas palavras o sentido
e
o da história dos gestos
com
que tuas mãos em torno do devir,
quentes
e sábias, tentam limitá-lo.
Da
vida falavas alto, da morte falavas baixo,
e
sempre e sempre repetias: ser...
Ainda
antes da primeira morte veio o crime
-
e era um rasgão cruzando teus maduros círculos
e
uma área havia
e
vozes arrastadas
que
então se reuniam
para
te proclamarem,
para
te conduzirem
-
pontes sobre todo abismo.
E
o que têm, desde então, balbuciado
são
pedaços
de
teu antigo nome.
***
Fala Abel, pálido moço:
-
Eu não existo. Algo me fez meu irmão
que
meus olhos não viram.
A
luz ele me apagou,
meu
rosto ele sufocou
com
o rosto dele.
Agora
ele está sozinho.
Eu
penso que ele nem deve existir:
com
ele ninguém faz o que ele fez comigo.
Todos
me seguem a trilha:
todos
chegam defronte à ira dele
e
diante dele parecem perdidos.
Creio
que meu irmão maior vigia
igual
a um tribunal.
É
em mim que a noite tem pensado,
não
é nele.
***
Tu, escuridão da qual descendo,
de
ti gosto mais que da labareda:
ela
reduz
o
mundo em que reluz
a
uma espécie de círculo
fora
do qual nenhum ser a conhece.
Já
a escuridão, em si tudo contém:
formas
e flamas e animais, e eu
-
assim como também ela reúne
pessoas
e potências...
E
pode ser isto: uma grande força
a
se mover nos subúrbios de mim...
Acredito
nas noites.
***
Eu creio em tudo que ainda não foi dito.
Quero
soltar meus mais sagrados sentimentos.
O
que ninguém sabe ainda querer muito
em
mim um dia há de ser espontâneo.
Se
é presunção isto, meu Deus, perdoa:
mas
é só isto o que eu tenho a dizer-te.
A
força melhor em mim há de ser como um impulso
assim
sem zangas nem hesitações;
e
é assim que te amam as crianças.
Com
esta maré, com este estuário
nos
largos braços do mar aberto,
com
esta volta crescente,
quero
reconhecer-te e proclamar-te
como
antes ninguém fez.
Se
isto é soberba, deixa eu ser o soberbo
por
minha prece,
que
tão grave e solitária
ergue-se
em frente a teu rosto de nuvens.
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