segunda-feira, 16 de março de 2015

Rainer Maria Rilke

Amo as horas sombrias de meu ser,
nas quais se me aprofundam os sentidos:
nelas eu tenho achado, como em velhas cartas,
meu dia-a-dia já vivido, e feito
alguma lenda distante e sofrida.
Delas me vem a noção de que tenho
lugar numa outra vida mais ampla e infinita.

E eu às vezes me sinto feito a árvore
que, sobre um túmulo, madura e ciciante,
preenche o sonho de algum morto jovem
(a cuja volta ela aperta as raízes mornas)
perdido entre amarguras e cantigas.

***

 Se a ti, vizinho Deus, eu incomodo às vezes
com rude batimento no meio da noite,
é que de quando em quando te ouço respirar
e sei que estás sozinho no salão.
E, se careces de algo, lá não há ninguém
que te ofereça um gole às mãos tateantes...
Sempre atento estou eu: ao menor sinal teu
eu estou muito perto.

Só existe entre nós uma fina parede,
por acaso: se houvesse, por acaso,
de tua boca ou da minha algum chamado,
ela se desfaria
sem alarme ou ruído.

De imagens tuas ela é toda feita:
imagens que em tua frente se põem - nomes.
E, tão logo se acende em mim a luz
com que te reconhece a profundeza minha,
ela some com um reflexo na moldura.

E meus sentidos, que em pouco se debilitam,
desligados de ti - ficam sem pátria.

***

Capto de tuas palavras o sentido
e o da história dos gestos
com que tuas mãos em torno do devir,
quentes e sábias, tentam limitá-lo.

Da vida falavas alto, da morte falavas baixo,
e sempre e sempre repetias: ser...
Ainda antes da primeira morte veio o crime
- e era um rasgão cruzando teus maduros círculos
e uma área havia
e vozes arrastadas
que então se reuniam
para te proclamarem,
para te conduzirem
- pontes sobre todo abismo.

E o que têm, desde então, balbuciado
são pedaços
de teu antigo nome.

***

Fala Abel, pálido moço:

- Eu não existo. Algo me fez meu irmão
que meus olhos não viram.
A luz ele me apagou,
meu rosto ele sufocou
com o rosto dele.
Agora ele está sozinho.
Eu penso que ele nem deve existir:
com ele ninguém faz o que ele fez comigo.
Todos me seguem a trilha:
todos chegam defronte à ira dele
e diante dele parecem perdidos.

Creio que meu irmão maior vigia
igual a um tribunal.
É em mim que a noite tem pensado,
não é nele.

***

Tu, escuridão da qual descendo,
de ti gosto mais que da labareda:
ela reduz
o mundo em que reluz
a uma espécie de círculo
fora do qual nenhum ser a conhece.

Já a escuridão, em si tudo contém:
formas e flamas e animais, e eu
- assim como também ela reúne
pessoas e potências...

E pode ser isto: uma grande força
a se mover nos subúrbios de mim...

Acredito nas noites.


***

Eu creio em tudo que ainda não foi dito.
Quero soltar meus mais sagrados sentimentos.
O que ninguém sabe ainda querer muito
em mim um dia há de ser espontâneo.

Se é presunção isto, meu Deus, perdoa:
mas é só isto o que eu tenho a dizer-te.
A força melhor em mim há de ser como um impulso
assim sem zangas nem hesitações;
e é assim que te amam as crianças.

Com esta maré, com este estuário
nos largos braços do mar aberto,
com esta volta crescente,
quero reconhecer-te e proclamar-te
como antes ninguém fez.

Se isto é soberba, deixa eu ser o soberbo
por minha prece,
que tão grave e solitária
ergue-se em frente a teu rosto de nuvens.


 [In Livro de Horas, Tradução de Geir Campos, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2ª ed., 1994]
















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