LIXO
Restos humanos e de animais: unhas, cabelos
Cabelos femininos que crepitaram sob o contato elétrico do
pente,
Micas de calos cortados com gilete
Escuras pústulas de feridas
Pelos de pernas narizes orelhas
Musgo perfumado de axilas femininas
Crânios de peixe
Leques abertos de caudas
Pentes de corte duplo das espinhas de peixe
Cabeças de galinha escalpeladas
Penas negras úmidas
Pés de galinha de escamas em cera
Ossos de animais de tutano sugado
Enodoadas entranhas verdes de ave
Tubos de ossos de peixes — mostruários de agulhas
Balões duplos de bexigas de peixe
Mordidas em maçã
Caroços de ameixas pêssegos melancias
Caroços de cerejas como vitamina
Carbono amarrotado com números
Fruto podre que vermes roem feito carne humana
Piteiras roídas de cerejeira de plástico de âmbar
Piteiras de dedos amarelecidos
Giletes azuis envelopes azuis de giletes passagens de bonde
etiquetas
Renda de papel de fitas de teleimpressoras
Restos de renda engomada
Cartuchos dourados vazios de carmim — cartuchos de
espingarda
Cascas de ovos que geraram monstros bicudos sem asa sem
cauda
Tampas de garrafa de cerveja
Cacos de vasos quebrados
Esteira, palha apodrecida,
Bandeira negra de guarda-chuva
Esqueleto de pássaro de guarda-sol
Guardanapos com a estampa da máscara mortuária dos lábios
Sacos de papel vazios que conservam dentro de suas rugas
grãos de cristal feito concha envolta em carne mole
Cenoura cortada com anéis verdes no centro e cada vez mais
avermelhados
Favas de ervilha — lábios cortados
Lâmpadas queimadas — ovos de ave-no-cio, fios
Cartões de sócio com os dez mandamentos em que ninguém mais
crê
Punhos amarelados
Gravatas de seda — caules arrancados de flores aquáticas
Tubos de pasta de dente espremidos
Rolhas
Fotografias batidas ao luar
Cravos que apodrecem terrivelmente
Tulipas narcisos gladíolos
Lírios que conferem ao monturo de lixo a solene aparência de
cemitério
Pregos fechos de roupas grampos agulhas parafusos grampos de
cabelo
Rolos ruivos de fio de cobre
Canetas esferográficas vazias
Teias de aranha meia de náilon
Luva sem par
Cadarços chapas de fogão pequenos discos
Velhos sapatos que aos poucos enverdecem feito relva
Desenhos infantis sóis e céus em que a chuva deixa sua
assinatura transformando-os em obras-primas
Capas berrantes de livro — útero sangrento das musas da
poesia
Grampos de cabelo abertos como bicos de papagaio
Rolos de papel-crepom molhados
Fios enferrujados
Restos rendados de lápis apontados
Cascas de noz — crânios de pássaro partidos
polpas podres de noz similares a cérebros humanos
tubos de palha e suas
meias arrancadas de papel para cigarro
Escovas de dente em que restaram apenas raízes em gengivas
de vidro
Caixas de lata de cartolina
Tubos de ensaio de vidro onde havia aspirinas — ervilhas
maduras
Garrafas de leite cerveja coca-cola
Garrafas de gargalo minúsculo — sanguessugas
Garrafas-cromorno garrafas-flauta garrafas-ocarina
Garrafas desventradas como peixes
Garrafas com estrias verdes
Garrafas que rescendem a bagaço e vômito
garrafas com maçã no focinho — leitões mortos
garrafas com gargalo entintado — boca de moleque de escola
Cascas de laranja — pele de mulher entre as omoplatas
Casca de pão azedado em água suja como na boca desdentada de
anciães
Metades espremidas de limões
Molas-espirais de cascas de maçã
Cascas de melancia — carne de cavalo atacada por grandes
moscas negras
Cascas de banana — membro masculino esfolado
Cascas de batata cortadas simplesmente sem economia como
se corta o pão
Rolos marrom de poeira
Cinzas de cigarro
Pontas de cigarros amassadas — grandes vermes brancos nascidos do lixo
Preservativos em cujo interior viscoso homúnculos apodrecem
Porcelana ondulada de pratos quebrados
Jornais amarrotados que atrasam até um mês e meio
Plástico, vidro inquebrável
Rolos de algodão com sangue e pus coalhados
Botões de chifre de lata de madrepérola
pedaços de gaze — como se tivessem sido arrancadas da moldura
tampões em que floresce a flor da feminilidade
faixas de gaze com pelos dourados de raízes brancas
Poesias (também esta)
Envelopes de ventre roxo arrancado
Selos rubros amarelos azuis verdes
Selos sobre os quais estadistas poetas e conquistadores do
espaço estufam o peito
Selos aprisionados pelo contato da língua assim como os
amantes são aprisionados
Selos que enlouquecem os filatelistas dispostos a embalsamá-
los
Selos carimbados feito reses
Selos debruados de renda
Selos em que flores florescem e leões rugem
Selos com carimbos de cidades
Selos com datas como nas caixas de leite pasteurizado para
que o lixo sempre esteja mais fresco
Cartas escritas nos trens sobre os joelhos
Cartas escritas em grandes máquinas de escrever com dedos flexíveis dedos
de datilógrafas dedos de onde escorreu
manteiga
Cartas escritas com mãos infantis
Cartas escritas com mãos trêmulas de ancião
cartões-postais escritos com esferográfica em terraços de
bistrôs
Cartas com a logomarca de hotéis famosos
Cartas de amor que a chuva transforma em tragédia
Cadernos de estudante que precisam ser guardados para a
velhice
cartões fúnebres a respeito dos quais nada se pode dizer
salada verde repolho verdura sempreverde
pimenta-do-reino aneto cravo couve-flor
Mordidas de maçã (de novo)
Cachos de lilás desmantelados como os pulmões arrancados de
um fumante
trapos elásticos colarinhos
panos impermeáveis lenços de musselina seda
Rosas
Rosas que ficam bem tanto no lixo quanto no poema
rosas que começam a feder como gente
rosas em que pousam moscas
rosas embrulhadas pelas mãos úmidas da vendedora em finos
papéis farfalhantes
rosas guardadas como peixes dourados em vasos de cristal
rosas cuja água foi trocada feito compressa sobre a testa do
enfermo
rosas amarrados com fios feito criminosos
rosas com as articulações dos ungulados
rosas com folhas similares às rosas artificiais
rosas que me fizeram acordar às 3,30 da madrugada para que
não as esquecesse até amanhã
Budapeste, 1966
[In Céu Vazio: 63 Poetas Eslavos, organização, estudo introdutório, notas biográficas e tradução Aleksandar Jovanović, São Paulo, Hucitec, 1996]
segunda-feira, 22 de junho de 2015
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