sábado, 11 de julho de 2015

Cristina Campo

Que longa aprendizagem para desnudar até ao fulcro, véu após véu, uma pele a seguir à outra, uma relação. Como se acredita por tanto tempo no tacto, na discrição, na reserva, véus delicados — e é justo que assim seja, enquanto não forem percebidos exactamente como véus: suaves insídias, perigos impalpáveis para a pupila límpida do amor.

Job, o melhor amigo de Deus, não teve nenhum respeito por ele, nem reserva nem discrição. Gritava-lhe tudo de si mesmo e não aceitava resposta senão dele: Voca me et ego respondebo tibi, aut certe loquar et tu responde mihi.

Oxalá estivesse cada amante absorvido apenas pelo seu amor, docemente descuidado dos sentimentos do outro e ao mesmo tempo, e precisamente por isso, esquecido de si próprio, imerso como um peixe jubiloso na realidade do outro. Nenhum amor teria alguma vez fim. «Que eu jamais queira pedir-te amor» deveria ser o voto recíproco dos amantes, a fórmula sacramental das núpcias.

É um equilíbrio impossível, mas de que mais há-de o amor desejar viver? «Enquanto não estiverdes em condições de ouvir o aplauso de uma só mão...».

Cada amor é um caminho sobre as águas de Genesaré: uma dúvida, um temor, um olhar para baixo e afunda-se. Os olhos deveriam permanecer sempre altos, fixos no deus tranquilo que
nos estende a mão.

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A mediocridade, o medo, a sujeição ao mundo. Tudo isto me parece hoje um espelho duplo que o príncipe do mundo faz deslizar como um diafragma por entre as raízes e as copas da alma: para que a estas nunca mais seja concedido reflectirem-se naquelas nem a ambas nutrirem-se umas das outras, felizmente, como o céu e a terra.

Este espelho não só tenta separar as duas partes da alma como também isolá-las a ambas em obstinada contemplação de si próprio: as raízes das raízes, as copas das copas. Nascem assim as linguagens em secções estanques; de um lado, «a vida é outra coisa, conservar um sentido saudável das proporções, não façamos literatura», e do outro: «a sublime missão, o sagrado nome», etc. Fica assim instaurada a retórica das raízes e das copas e a petrificação, ao mesmo tempo, tanto da ideia como da vida.

Talvez a vontade nos tenha sido dada só para destruir aquele espelho (a que com grande frequência as pessoas chamam precisamente vontade). O deus tira o juízo a quem quer perder, dizem. Mas com que sagacidade o tira a quem quer salvar! De outro modo, como poderia induzir um homem através da noite escura, das florestas de ursos e de serpentes, dos fantasmas nocturnos e da imagem dos seus próprios pecados — toda a interminável procissão de horrores necessária ao encontro?

É sempre um acesso de loucura que abre caminho ao labirinto das aparências enganosas, onde os diamantes parecem cascas de caracol, as pedrinhas da estrada pérolas e o inferno escancarado a cada passo as graciosas pradarias do Eliseu.

A juventude é o primeiro, e o mais fatal, desses labirintos. Até os sonhos se lhe apresentam invertidos, lisonjeando-a de modo a fazê-la perder-se com divinas palavras: mensagens escritas ao contrário numa casa ainda privada de espelhos.

É o tempo em que o deus nos tapa os olhos com a sua mão — ou iremos fazê-lo pouco depois nós mesmos devido ao terror.

[In Os Imperdoáveis, tradução de José Colaço Barreiros, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, pp. 162-164].



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